Despertei lentamente sentindo o colchão macio que eu estava deitada e percebi que não era o meu e sim uma cama de hospital. Apesar de estar no soro eu não me sentia mal, nenhum dos sintomas daquela noite se faziam presentes. Minha individualidade suga tudo de mim, então se a uso desenfreadamente sinto a morte bater a porta. Aquela vez foi uma exceção, ela parecia apenas querer arrombar e me levar à força.
Me sentei no colchão pensando se devia continuar no soro e considerar aquilo como férias, apesar de estar num lugar horrível ou se devia apenas tirá-lo e sair dali. Mas quando me endireitei o vi.
Hawks estava sentado na cadeira ao meu lado de braços cruzados e olhos fechados. Mas não estava dormindo, pois no primeiro movimento que fiz para mudar de posição na cama ele abriu os olhos. E eles estavam nublados. Ele estava bravo, muito bravo. E com razão.
Nos encaramos por um tempo e era nítido o clima ruim que havia se formado naquele quarto. Ele estava bravo e eu me sentia culpada. E aqui temos outra ironia: geralmente era eu quem costumava estar irritada, não ele.
Esperei que ele dissesse algo, mas ele não o fez. Apenas me encarou como se aquilo pudesse me punir por minhas ações. Ou foi oque pensei. Hawks voltou seu rosto para o teto e suspirou pesadamente antes me olhar novamente:
-O que pensa que está fazendo?- seu tom era sério.
Em outras ocasiões aquela voz me arrepiaria de uma forma muito boa, mas naquele momento aquilo não soou sensual de forma alguma:
-Oque fui treinada para fazer.
Não sei de onde veio a idéia de desafiá-lo, mas ela veio e eu quis retirar oque havia dito logo em seguida:
-Eu te dou espaço para pensar e isso que você faz? Ser completamente irresponsável?
-Ah, me desculpe- falei irônica- Mas o que eu devia fazer? Me sentar e esperar que ela se destruísse?
-Não estou falando disso Yume- meu nome vindo de seus lábios era cruel- Você usou sua individualidade por dias seguidos ao ponto de desmaiar. Sabe o quão preocupado eu fiquei durante uma semana?
Uma semana? Eu estava naquela situação por tanto tempo assim? E como assim ele não estava falando de Nagant?
Era impossível que ele não soubesse do que havia acontecido. Imediatamente fiquei brava por ele achar que meu estado era mais importante que o dela:
-Está mais bravo com isso do que com oque eu fiz? Sério Hawks?
-Não estou bravo com isso.
-Por que não?- eu comecei a me exaltar.
-Porque ela não tinha mais jeito- pela primeira vez sua voz soou mais amena, demonstrando certa tristeza- Tentamos entrar em acordo antes de você a encontrar, mas não conseguimos.
Parei por um momento imaginando como havia sido a conversa deles. Devia ter sido para Hawks tentar convencer alguém como ela a abandonar aquele lado. Devia ter sido duro para ela ouvir tudo aquilo tendo passado pelo que passou também.
Achei que Hawks demonstraria tristeza e conversaríamos sobre ela, mas eu estava muito errada:
-Pra alguém que diz que faço tudo sozinho você não é muito diferente- ele disse em um misto de ironia com descontentamento.
Acho que eu nunca tinha o visto daquele jeito.
Será que aquela enxurrada de desgraças não iriam passar nunca?
-Agora não Hawks. Agende um horário para continuarmos isso, pois agora estou cansada.
Me deitei nada disposta a discutir com ele. Peguei o cobertor e o subi me cobrindo enquanto deitada de lado, de costas para ele. Iria ignorar sua presença e caso ele insistisse em continuar aquilo eu o xingaria com todo o meu repertório de insultos:
-Yume- ele chamou recebendo como resposta o silêncio.
Eu pensava nela. Me permiti aquilo uma última vez, pois eu precisava seguir em frente.
Ver Lady Nagant naquela situação era triste, mas aquilo foi necessário, pois eu sabia que ela se sentiria mal pelo resto da vida por tudo oque havia sido obrigada a fazer. E já bastava que aquele fardo fosse carregado por mim. Saber que houve a tentativa de acordo me acalmava um pouco.
Senti o vento frio entrar pela janela e tremi um pouco debaixo do cobertor. Em seguida o senti ser erguido e um corpo quente se aninhar ao meu, me abraçando calorosamente:
-Me desculpe, não foi meu intuito te fazer chorar- sua voz continha culpa- É só que eu jurei que nada ruim aconteceria a você... A ninguém, e veja só como estamos- seu rosto se afundou em meus cabelos- Muitas coisas estão acontecendo ao mesmo tempo para todos nós, mas você não devia tomar a frente das coisas assim Yume.
Me chamar pelo meu verdadeiro nome havia se tornado um hábito para ele e aquilo fazia eu me sentir estranhamente em casa:
-Yume?
Me virei um pouco para ele e ao ver que eu não estava chorando sua sobrancelha se ergueu questionadora:
-Você é má.
-Você quem começou me dando um sermão como se fosse meu pai.
-Na ausência dele eu posso ser o homem que te apóia quando preciso.
Engoli em seco e me virei na cama ficando de frente para ele, o beijando de forma mais intensa do que eu queria. Ou talvez eu quisesse as coisas mais intensas:
-Hey. Aqui não é lugar para isso.
-Não tem hora nem lugar para isso.
-Você está se recuperando, não vou fazer nada com você até que melhore.
-Minha recuperação não te impediu de começar uma briga.
-Eu não comecei uma briga- ele fez uma expressão digna do Hawks que eu conhecia.
-Ah, claro.
-Eu só estava preocupado.
Ele apoiou a cabeça no travesseiro e me observou intensamente:
-Perdeu algo na minha cara?
-Eu sempre perco muitas coisas quando estou com você. Como sanidade, juízo... Controle.
Sua voz foi ficando mais rouca à medida que ele falava e seu olhar foi descendo para minha boca. Tentei fazer o mesmo, mas meu foco foi para sua cicatriz na bochecha. Levei meus dedos para lá a tocando:
-Dói?- perguntei.
-Não mais.
A mão dele pouso sobre a minha enquanto ele ainda me encarava daquela forma que ninguém mais era capaz:
-Desculpe mesmo. Eu não queria me alterar.
-Você também está lidando com muita coisa.
-Não justifica.
-Está tudo bem Hawks.
Seu olhar se tornou pidão:
-Achei que estivesse chateada. Você sumiu.
Ele brincava distraidamente com meu cabelo:
-Eu precisava sentir aquelas coisas ruins sozinha.
Ele assentiu.
Permanecemos naquele silencio, dessa vez confortável. Havia muito a ser dito, mas nos últimos meses não pudemos desfrutar da presença um do outro e sim, aquilo estava fazendo falta. Então apenas aproveitamos aquele momento. Senti o sono chegando enquanto Hawks fazia um cafuné gostoso.
Não sei se eu já estava em sono profundo quando o ouvi dizer que me amava, mas tenho certeza que se foi um sonho eu fiquei da cor de suas asas.
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Repulsivo - Imagine Hawks
RomanceYume via a sociedade de heróis como pura hipocrisia e odiava fazer parte daquele sistema. Mas ter seu caminho cruzado por Hawks traria mudanças para sua vida que talvez fossem difíceis de aceitar.