Caminhos que se cruzam

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Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

O tempo nublado na terra da garoa entregava mais um fim de tarde potencialmente escuro, chuvoso e denso na vida da jovem advogada de pele clara e fios dourados que provavelmente ia levar trabalho para casa. O seu ofício, apesar de nobre, nem sempre parecia tão poético como ela queria que fosse — e no auge dos seus trinta e poucos anos, tudo o que ela queria era um pouco mais de poesia nos seus dias cansativos — especialmente no meio de uma semana que parecia interminável.

Precisava entender a si mesma e queria ser liberta das amarras que ainda a prendiam em gaiolas invisíveis. Nas horas vagas, ela escrevia para aliviar a sua sede de viver e de ir mais além. Os seus versos precisavam atravessar as fronteiras estreitas da sua garganta, mas ela ainda não sabia como. Expressar sentimentos nunca foi verdadeiramente o seu forte.

Tudo era guardado a sete chaves.

Soraya Thronicke sempre foi a dicotomia entre a bravura e a quietude. O seu jeito silencioso e observador — aquele de quem lê as entrelinhas —, também podia ser feroz e revolto como o mar: ela era a personificação da calmaria e da valentia, que de forma misteriosa, sempre andavam de mãos dadas. Geminiana. Contradição era o seu sobrenome.

A valentia muitas vezes era carcaça, uma dura carcaça que alguns dias pesava mais.

Em um gabinete pequeno daquele Tribunal, algumas fotografias: família, amigos, gostos musicais, literários, televisivos... de tudo um pouco, em algo que ela definia como bagagem. A bagagem de quem tinha ânsia de viver e de voar. Ao seu lado, colegas queridos e estagiários que admiravam o seu espírito de onça-menina: ora tinham temor, ora achavam extremamente engraçado o seu desejo por perfeição nos detalhes e a sua exigência em querer sempre o melhor. Era exigente e gentil na mesma proporção. Com amor e com coragem ou com ódio e com medo, a moça precisava reconhecer: era boa no que fazia, mesmo nos dias ruins.

Em uma tarde chuvosa — como de costume —, uma estagiária mais atenta percebeu que Soraya estava pesquisando sobre a vida de uma Defensora Pública renomada, que morava no exterior: Simone Nassar Tebet. A advogada fazia anotações em seu bloquinho de notas com uma letra robusta e um pedacinho de papel ficou à mostra da estagiária que a acompanhava naquele fim de tarde. A jovem, sempre atenta, conseguiu ler que a chefe havia escrito "Mandar e-mail para Simone. Com urgência (e coragem)."

— Perdão pela intromissão, mas quem é essa Simone, chefe?

— Uma Defensora Pública brasileira, filha de imigrantes libaneses, que atua há uma década na Itália com questões de imigração. Ela é a autora do livro "Além da Fronteira — os limites jurídicos e psíquicos da vida do imigrante" e me cativou com a sua escrita. Estará no Brasil nos próximos dias e quero tentar encontrá-la para pedir algumas referências para a minha dissertação de mestrado. E de quebra, se o horário dela não for muito apertado, quero trazê-la aqui para bater um papo com vocês.
É uma grande referência, Amanda, querida.

— Uau! Que gigante! Vou pesquisar sobre ela e sobre a obra. A senhora sempre traz referências novas. Incrível. Obrigada!

— Não precisa me agradecer, meu bem.

Rua Humaitá, Capital Paulista

O trânsito pesado de São Paulo era misturado com a densidade dos olhos cansados de Soraya, que via a chuva cair de forma cada vez mais feroz. A temperatura despencava e os tons de cinza da cidade pareciam ficar gradativamente mais escuros, contrastando com o tom alaranjado do seus cabelos tão finos e da sua pele tão delicada.

| Além Da Fronteira | Simone x SorayaOnde histórias criam vida. Descubra agora