Meu refúgio

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Aquela manhã de domingo estava especialmente fria — era outono. Da biblioteca de Soraya, que possuía uma janela espaçosa, era possível ver o cair das folhas das árvores do parque e a calmaria que aquele cenário transmitia arrancou um suspiro de Simone, que ao entrar no ambiente, constatou também que a jovem advogada tinha um amplo acervo de livros.

— Devo admitir que nunca vi uma biblioteca tão grande e tão bem organizada em um apartamento. Seu acervo é realmente surpreendente, Soraya. — afirmou Simone, encantada com o que via.

— Este é o meu refúgio, Simone. Cada obra tem um significado e me salvou — sob certo aspecto —, em diferentes momentos da minha vida. Os livros são a minha definição de lar. Bom, mas por favor, sente-se querida, vou buscar os pães de queijo que preparei, ovos mexidos e algumas frutas. Ao seu lado está a cafeteira e algumas xícaras. Pode ficar à vontade.

Simone percebeu que Soraya estava com a voz um pouco trêmula e levemente agitada. Não pôde deixar de reparar também que a mais nova queria recebê-la da forma mais decente possível e sabia que ela tinha algo para falar, algo de suma importância.

Ao escolher a cápsula de capuccino na máquina, notou que sob a mesa de madeira maciça que ficava próxima à janela, Soraya havia deixado algumas anotações. Uma delas, com uma letra bem desenhada, dizia "Perguntar [para Simone] qual é o seu conceito de liberdade".

A mais velha sorriu. Algo naquele ambiente e naquela jovem advogada lhe fazia constatar — mais uma vez —, o quanto é bonito ter sede de viver e de sonhar.

Trabalhar com imigração durante anos e ouvir tantas histórias de gente sedenta por liberdade lhe fez não querer perder tempo para o crucial da vida: amar e ter coragem. Especialidade de almas atentas.

Quando Soraya entrou na sala com uma bandeja de madeira e um café da manhã quentinho e muito bem ornamentado, Simone sentiu a sensação estranha de ter o seu coração vibrando de uma alegria genuína, daquelas que a gente sente quando encontra um velho conhecido e transborda de saudade.

— Simone, é tudo simples, não sou tão criativa com a cozinha, se precisar de mais alguma coisa, bom, me sinalize e me desculpe...

— Soraya, querida, pare de se desculpar. Desde que cheguei, cada detalhe deste apartamento me trouxe aconchego e confesso que estou descansando mais do que se estivesse dormindo em um flat sem vida.
Sente-se aqui comigo e vamos tomar café da manhã. Eu realmente quero lhe ouvir. — disse Simone, puxando suavemente a mão delicada de Soraya, que se aconchegou na poltrona ao lado.

— Fico feliz que você está à vontade, Simone.

— Agora falta você ficar também —, resmungou, e as duas caíram na gargalhada.

— Você vai perceber que me levo a sério demais.
Que me cobro demais. E que isso por vezes é um fardo pesado, que aos poucos eu tenho deixado de levar sozinha. Mas é um processo...

— ...como tudo na vida, Soraya. Eu também já fui extremamente exigente comigo mesma e na mesma proporção, com os outros. Depois de anos, percebi que estava presa no próprio território da minha alma — e pior, que ainda fazia outros reféns. A vida nos pede coragem, mas também nos suplica por leveza.

— Chegar aos 17 anos em uma cidade como São Paulo me fez ser corajosa e um tanto quanto cega às sutilezas da vida. Foi somente aos 27 que percebi que a minha alma não iria sobreviver só de trabalho e de pendências de trabalho. Mas as cargas da vida ainda me acompanham. — constatou a mais nova, com um olhar um tanto quanto melancólico.

| Além Da Fronteira | Simone x SorayaOnde histórias criam vida. Descubra agora