Dias depois e lá estávamos em um círculo de cadeiras. Danillo havia faltado dois dias. Sentou-se ao lado de Léo. Este não parecia ter notado minha apreensão quanto àquele; muito menos havia notado quem era aquele ser ao seu lado.
"Cabelo maneiro", disse Amanda com tom zombeteiro, "deixa eu ver teus pulsos?".
O cabelo de Danilo era liso e a franja caída em sua fronte davam-lhe um aspecto de emo restarteiro.
"Calças verdes cairiam bem em você", disse Yago, que se ria junto a Brenner, quase em uníssono, como se fosse combinado.
Eu não estava bem. Permaneci calado e observava Danillo atentamente. Ele estava incomodado com as piadas, mas a exteriorização era tão sutil que passou despercebida.
"Kássio, tua mãe está te chamando", disse a professora Daisy.
Desde que meu pai morreu, a Manuela trabalha sem parar; por ser antropóloga ligada a causas indígenas, ela está sempre longe de casa. Só hoje ela resolveu aparecer em minha escola. Quando o trabalho está intenso ela fica até 2 semanas longe de casa.
"Já estou indo. Fui em direção a porta meio que sem vontade. Queria ver Manuela, mas a data de hoje não é muito comemorativa".
Ao sair, vi Manuela conversando com muitos pirralhos que passavam pelo corredor.
"Kássio!", em poucos segundos fui apertado pelo abraço de Manuela. Usar somente os nomes sempre foi muito natural em minha família, então eu chamo minha mãe e até mesmo meus avós pelo nome. "Anjo, eu deveria ter vindo antes, sei o quão difícil é o aniversário de morte do Jaílson".
Sua aparência não era das melhores. Tinha seus cabelos desgrenhados e roupas sujas. Uma bolsa de lado, com a alça passando pelo lado oposto. Suas botas pretas estavam cobertas por barro seco e as calças bege já estavam quase inutilizáveis.
"Tá tudo bem, Manuela", eu tinha que me manter calado, não queria expor meus problemas tão cedo. "Tô preocupado com minhas notas, só isso".
"Então vamos à soveteria? Depois passamos na floricultura e compramos algumas flores para a lápide do Jaílson. Pega tua bolsa".
"Quê? tá louca? Acabei de dizer que estou preocupado com minhas notas", eu pensei melhor, ri meio sem graça e disse que, se ela quisesse, poderia esperar na biblioteca, pois ainda nem havíamos tido o intervalo.
"É muito tempo, mas eu espero", ela apertou minhas bochechas e se foi.
"Tem muito o que fazer lá, aproveite", sorri já sabendo o que aconteceria.
Eu voltei para a sala e a professora Daisy pediu que a equipe e organizasse e começasse a montar o script da apresentação, mas o sino tocou e todos fomos para o intervalo.
Mesmo havendo passado quase uma semana desde que as aulas retornaram, Yasmin ainda não terminara a organização dos livros novos nas estantes. Com a autorização do Seu Ivan ela colocara um aviso de "Proibida a entrada" para impedir que os maníacos invadissem. Ela já me esperava à porta da minha sala quando eu saí.
"Kássio, preciso da tua ajuda".
"Lembra dos livros proibidos? Ainda não os li. Sem livros, sem ajuda", eu ri.
"Seu Ivan tá muito em cima esses dias. Prometo que vou dar um jeito".
"Tá bom", girei os olhos.
Ela abriu a porta e percebi que ela não havia feito muito progresso. Tínhamos muito trabalho para fazer.
"Eu tava precisando mesmo era de uma conversa", eu disse, "não de mais trabalho".
"Você acha que consegue conversar enquanto me ajuda a arrumar aquela prateleira enorme?".
Mas que safada, pensei, "Claro que consigo. Eu vou carregar os livros com a boca?".
"Ou, tá ignorante assim por quê? Cai pro pau, seboso!".
Yasmin era uma das minhas melhores amigas extatamente pelo bom humor. Léo era bem humorado também, mas seu humor não era tão inocente quanto o dela. Abrimos a escada, ela subiu e recebia os livros que eu a entregava. O silêncio se fez presente e ela repentinamente parecia tensa; eu podia sentir seu receio.
"Então... Eu queria falar... Sobre ele... O Danillo"
"Calma! Só fale se você estiver preparado. Eu estou curiosa porque sou tua amiga e você sabe que não vou falar pra ninguém, não importa o que for.
"Falar o que? Eu também não digo. Quero saber".
Olhamos assustados para trás. Não a ouvimos abrir a porta. Amanda apertou o passo. Ela dava saltos, sorria.
"De que vocês estavam falando?"
"Nada não! Você veio ajudar?", perguntou Yasmin.
"Clarice Lispector, né, amorzinho? Você vai emprestar ou não?"
"Vou, eu prometi. Eu vou arrumar as prateleiras altas agora e o Ká já tá me ajudando. Arruma as lá da frente, por favor".
Yasmin queria ela fora, mas ao mesmo tempo queria ajuda.
"E então?", Yasmin cochichou para mim.
"Ela pode ouvir", eu disse tremendo.
"Eu não vou ouvir. Quem tu acha que eu sou? Tá bom, desculpa! Eu só queria saber o que era. Não vou contar, eu juro. Tu não confia em mim?" Ela riu de uma forma terna e me abraçou rapidamente, "é algo grave?".
"Eu confio e eu acho que é grave, mas não sei se é uma boa ideia contar agora, preciso confirmar uma coisa antes", e eu saí sem ter ajudado em nada.
Pouco tempo depois o sino tocou e voltamos para a sala.
"Eu quero um relatório completo da apresentação, escrevam o que cada um vai fazer. Caso haja discrepância entre o escrito e o apresentado, será descontado ponto da equipe, não somente do aluno".
"A professora tem ficado mais irritada", disse Brenner, "posso nem jogar Minecraft que ela ameaça tomar o celular", ele falava como se tivesse razão.
"Ela é irritada, mas é gostosa. Pra que jogar se tu pode olhar pra ela?", Léo olhou com cara de safado pra Brenner.
"'Cê' diz isso porque a Amanda saiu, hahaha, duvido que tu tenha coragem de falar isso com ela aqui dentro".
"Ah, cala a boca! vamos fazer a droga do trabalho".
Amanda retornou. Ela era nossa líder, então definiu logo o que cada um iria fazer. Danillo decidiu vir para perto do grupo.
"Nosso trabalho vai ser sobre isomeria espacial, mais especificamente sobre o desvio da luz polarizada".
"Ai, não! por que tu sempre escolhe um tema escroto? A gente poderia falar sobre solubilidade", disse Yago chateado. Yago era muito preguiçoso quando o trabalho envolvia química ou matérias de humanas, mas era um garoto muito disciplinado no laboratório de informática.
"Nós estamos no 3° ano, Yago, não quero ficar no vulcão de vinagre. Cresça!".
"Eu também acho que tu deveria pensar em um assunto mais fácil".
"Ah, lá vem. Vai pro grupo das patricinhas do fundão. É isso que tu quer? Hein?", Amanda deu um soco no ombro de Léo, "responde!", outro soco. Vez ou outra ela tinha desses surtos, o que me fazia pensar se ela era realmente tão inteligente e 'superior' como parecia.
Em meio a risadas do nosso e de outros grupos próximos, Léo disse rindo que não era isso.
Enfim acabou a aula e nem ao menos tínhamos colocado as ideias no papel.
"Vamos à sorveteria do Willian? Semana passada tinha uns boys surfistas, bronzeados e sarados lá". Amanda sabia como provocar Léo.
"Como é? É pra isso que vamos lá?", Ele ficou logo emburrado. Não tinha coragem pra dizer algo.
"Claro que não, meu bezerrinho", Amanda passou a mão na cabeça dele insinuando que ali deveria haver chifres, "é só que quando eu estava lá fora a Manuela me convidou para irmos com o Kássio". Yago e Brenner riam como idiotas.
"É assim que é namorar? Queria ter alguém para me chamar de bezerrinho também", disse Brenner.
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Going Under
RomanceKássio é um garoto louco por livros, estava no 1º ano do ensino médio e tinha 15 anos quando teve sua vida marcada pela morte de seu pai e por um namoro que deu errado. Ainda na mesma escola e passados dois anos, seu maior pesadelo volta a assombrá...