Vestígios do passado

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💫ALICE 💫


Do céu ainda arroxeado cai uma neve pesada, e uma camada fina já cobre as ruas de Cambará do Sul. Levanto a gola do casaco com uma mão, enquanto que a outra segura a caneca fumegante de um Chá de hortelã bem quente, as cortinas sendo sopradas de repente por uma brisa gelada que me faz arrepiar até a cabeça. Não demora muito e ela chega tocando a campainha, segurando um guarda-chuva em plena seis da manhã.

Jenny…

— Será que dá por favor para descer e abrir o portão? — Pede ela com a sua voz estridente — Caso não saiba eu estou congelando aqui.

Eu rio ouvindo o interfone, então deixo o restante do Chá em cima da minha penteadeira, já que os outros móveis ainda estão para chegar. Desde que concluí o meu estágio e voltei para trabalhar na cidade onde morei por toda a minha vida, acabei mudando para uma casa alugada com o meu namorado, escolhida é claro pela Jenny por ficar perto de onde ela mora, bastando atravessar a rua. 

Em anos ela é a segunda - e agora - melhor amiga que eu tenho, a irmã que nunca tive depois do falecimento da minha mãe.

— Minha nossa, até que enfim — Ela entra de uma vez quando o portão se abre e corre para dentro de casa, não sem antes retirar o gorro lilás de sua cabeça revelando os seus cabelos louros como um véu caindo sobre os ombros, depois sacudindo o guarda-chuva lilás se livrando da neve derretida.

— Bom dia pra você também, Jenny.

Ela retira as luvas vermelhas de lã das mãos, deixando em cima da mesa de jantar que por enquanto está na pequena sala de visitas. 

— Bom dia — olha para os lados procurando —, cadê o seu notebook? Eu não estou vendo, deixou no hospital de novo?

— Está lá em cima, vamos subir. No quarto está mais quentinho.

Sinto ela segurar o meu braço me parando logo que coloco o primeiro pé no degrau da escada, ela é mais baixinha do que eu, a diferença é que tem bunda e uma cintura fina.

— O seu namorado idiota está aí? — Cochicha olhando para cima. Eu seguro a mão dela retirando.

— Não, ele não está. E segundo, ele não é um idiota.

Seguimos de uma vez para o meu quarto, as luzes estão apagadas e a pouca claridade do dia cinza lá fora dá a sensação de estar quase anoitecendo. Dias assim são estranhamente confortáveis pra mim, eu gosto do meu roupão, minha cama e uma bebida quente. De tudo dessa lista, hoje eu apenas não estou com o roupão. 

— Você não enxerga porque gosta dele, ele parece ciumar até de mim. Como coisa que eu vou comer você — finaliza com um sorriso besta na cara. 

— Você aperta a minha bunda e me chama de gostosa, como não vai ciumar disso? 

Ela dá de ombros e senta no edredom bagunçado da minha cama, com os braços ajeitando um travesseiro perto da cabeceira até chegar mais para trás.

— Ele é muito besta — ela diz sem papas na língua —, afinal qualquer um pode ver que se eu fosse comer alguém seria o gostoso que vim ver hoje, no seu notebook. A propósito, passe para cá, por gentileza.

— Sua boba…

Jenny apoia o notebook em cima do travesseiro que está em suas coxas, enquanto eu abro uma das  caixas no chão procurando alguma roupa. Daqui a pouco já é hora do meu turno na emergência do PA (Pronto atendimento) e às sextas-feiras sempre são mais agitadas. E hoje será um dia daqueles com as ruas cobertas de neve desse jeito. E mês que vem a tendência é piorar com a chegada dos turistas.

Nas batidas do CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora