Segurança particular

6 2 3
                                    


💫ALICE💫

[Anos atrás]

Tentando a todo o custo fazer silêncio por causa da minha mãe que trabalhou até tarde adiantando as massas, eu abro de fininho a porta da padaria, com uma fita afastando o sino barulhento para longe preso pela ponta em um prego.

Eu quase levo um susto e por pouco não grito, porque são quatro horas da madrugada e Miguel está encostado na parede da minha casa, a respiração saindo da sua boca em baforadas de ar quente em contraste com o frio.

— Minha nossa, a quanto tempo voce está aqui? — Pergunto, trazendo parte da minha mochila para a frente guardando as chaves, sem parar de olhá-lo.

Miguel meio que dá de ombros como se fosse uma pergunta que não precisasse de resposta.

— Está frio, Miguel. Você não precisa vir para me acompanhar até o ponto todos os dias, não é necessário.

Não que eu seja mal agradecida, ele sempre fez isso desde que arrumou o seu trabalho de segurança, mas está frio pra caramba e pelo jeito se ele dormiu três horas foi muito.

— Sou eu quem decide se é necessário te acompanhar até lá ou não. — Ele diz se virando para mim, as mãos dentro da jaqueta de couro, os olhos escuros e pontas do cabelo loiro escapando do coque no alto da sua cabeça. Tem mais duas golas aparecendo no pescoço, indicando que tem mais roupas por baixo.

Eu não falo nada, apenas desço a calçada seguindo na frente, as pedrinhas debaixo do meu All-Star fazendo um barulho que considero escandaloso. E mesmo na grama o barulho parece maior por estar molhada.

No ponto de ônibus vazio eu sento, e olhando as luzes amareladas dos postes entre as árvores do outro lado da rua, eu me dou conta de que desde que saímos Miguel está mantendo uma certa distância de mim. Agora mesmo as mãos continuam nos bolsos mas ele está disperso. De algum jeito queria saber o que ele tanto está pensando.

— Miguel— chamo-o, como parece não ouvir eu o chamo de novo — Miguel, está ouvindo?

Parecendo voltar para a realidade ele vira o rosto rapidamente para mim, e agora que estamos em um lugar mais iluminado ao contrário da porta da minha casa, eu consigo notar um hematoma coberto, acho que de propósito por seu cabelo.

— O que foi isso? — Pergunto ficando de pé imediatamente.

Quando os meus dedos estão prestes a tocar o machucado ele segura minha mão com certa força, o maxilar trincado, até perceber o que está fazendo e ir afrouxando os meus dedos aos poucos. Passo a mão na parte de trás da minha calça assim que ele solta, como se isso fosse aliviar alguma coisa.

— Me desculpe, não quis machucar sua mão.

— Você não machucou, apenas apertou forte… — Digo a verdade, ainda tentando ver a lateral da sua testa — É o seu pai de novo?...

Um suspiro pesado é o seu jeito de dizer que sim, para depois ficar olhando para o nada. Ao longe dá para ouvir o barulho abafado de alguns latidos e vidro quebrando.

— Você quer conversar? — Insisto eu, na tentativa de fazê-lo desabafar. — Eu sempre converso com você sobre tudo, você sabe que pode me contar qualquer coisa também, certo? — Fico esperando.

— Eu sei… É só que não quero falar disso.

— Está bem, mas se quiser, me chama lá em casa que podemos ir para aquele café que você sempre me levava quando a gente saía da escola. — Tento soar humorada, quem sabe isso não ajude a aliviar o seu estresse — Pensando bem, acho melhor você me mandar alguma mensagem. Minha mãe vai te bater se você aparecer lá em casa dizendo que quer falar comigo.

Dessa vez consigo causar ao menos um sorriso fraquinho nele e com isso sinto o peito se encher por uma sensação de carinho, os seus olhos mesmo abatidos brilhando olhando para mim.

— Obrigado por isso. — Diz ele, eu maneio com a cabeça concordando, e depois ele volta aos seus pensamentos.

Algum tempo a mais de silêncio, o vento frio castigando e o meu ônibus finalmente chega, me dirijo para os fundos. E mesmo o ônibus já saindo consigo ver ele parado olhando, até o veículo desaparecer.

[ ... ]

Com dor de cabeça e nas costas eu desço no ponto quase nas últimas, sem forças seguindo para casa. Dessa vez Miguel, o meu segurança, como eu gosto de brincar com ele, não está aqui. Acho que finalmente deve ter dormido, coitado, tomara mesmo que tenha conseguido. Não sei como ele aguenta o trabalho e todos os problemas que o pai dele vem causando por causa da bebida. Eu ainda me sinto triste por ele ter aparecido machucado, na certa deve ter tentado defender a mãe, e o pai o acertou com algo.

— Minha nossa senhora — um feioso de camisa de futebol no ombro, encostado em um poste logo que viro na rua de casa se aproxima assobiando, quase me atalhando no meio da rua. Consigo desviar e ele fica olhando minha bunda. — Macetava, hein. Macetava muito.

Eu trinco os dentes, a raiva semelhante a um líquido quente subindo até a cabeça, os batimentos ecoando nos ouvidos.

— E eu maceto a sua cara, desgraça. — Cuspo cheia de ódio, virando para dizer em sua cara. Ridículo!

Feioso e nojento, com certeza nem banho tomou hoje.

Ele começa a rir para o seu grupinho, como se o que eu tivesse dito fosse engraçado.

— Vai me macetar, é? Eu duvido — a passos lentos porém intimidadores ele vem se aproximando, o arrependimento por ter reagido surgindo  — Duvido que faça isso.

— Ela talvez não faça, mas eu sim — Diz o meu segurança surgindo de repente, todo sério como poucas vezes consigo ver. — Agora vaza daqui.

Com uma olhada de cima abaixo, vendo Miguel de uniforme e uma arma na cintura, acredito que ele calcula ser impossível peitar. Então com o rabo entre as pernas vai saindo.

Miguel fica encarando até ele desaparecer, para depois se aproximar de mim.

— Você está bem? — Pergunta, me olhando de cima abaixo.

— Eu estou sim, ele só fez aquilo porque eu respondi, fiquei estressada.

Caminhando a passos lentos para não chegar logo em casa, vamos os dois descendo a pequena ladeira conversando.

Alguns vizinhos estão varrendo a calçada mesmo sendo quase noite e tem crianças correndo para cima e para baixo, seja brincando de bola ou amarelinha.

Quando a figura da minha mãe surge recolhendo o toldo da frente da padaria, Miguel entende que é o limite até onde ele pode me trazer.

— Obrigada, de novo — falo outra vez. A voz quase em um sussurro.

E sem dizer mais nada ficamos parados quase de frente para o outro, prolongando o tempo que nem temos mais, até o alarme do seu celular indicar que é hora de ir.

Nas batidas do CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora