Dia Vinte e Um

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No frio de sua mente, Sarah se culpava pelo erro. Em todas as possibilidades ela não imaginou ser drogada junto com os amigos, tinha levado o alvo sobre suas costas e sabia que arriscaria sua vida antes das deles. Como outras situações na vida, reconhecia o olhar do chefe, o olhar de um lobo vestindo uma pele de cordeiro esperando pela oportunidade de mordê-la por completo. Foi esse o olhar que recebeu antes de ser abusada, e com isso ela saberia lidar. Mas a imagem de seus amigos sendo arrastados, do homem pronunciando seu nome, dos sons de conversa que iam e vinham de sua consciência e as luzes brancas sobre si, a fizeram se lembrar de que ainda havia uma hipótese, eles tinham caído em uma armadilha desde o começo.

Ela podia sentir que seu corpo estava sendo violado constantemente, a dor e a ardência não se escondiam na escuridão em que havia se enfiado. Chegava até seu cérebro a fazendo se lembrar de que ainda estava viva. Mesmo antes de entender o que havia se passado, um choque percorreu seu corpo fazendo-a acordar do transe em que a haviam enfiado. Seu corpo se sobressaltou na plataforma fria ao qual estava pousado enquanto seus olhos tentavam se adaptar a luz branca que apontava diretamente para si. As vozes ainda estavam longe, ela tentava fazer seu cérebro acompanhar os acontecimentos a sua volta.

— Só se passou oito horas desde então, ela acordou muito rápido, vamos ter que dobrar a dosagem da próxima vez — uma das vozes dizia.

— Acho que talvez uma substância mais forte poderia surtir um efeito melhor, se aumentarmos a dosagem desta podemos causar danos no seu cérebro e precisamos dele intacto para o estudo — outra completou.

— Por enquanto vamos deixá-la acordada, preciso ter uma conversinha com ela — a última voz fez os pelos de seu corpo se arrepiarem e sua nuca latejou tão forte que seus olhos se fecharam com força.

Ela reconhecia aquela voz, não sabia exatamente de onde, mas conhecia muito bem a tonalidade, a altura e o sotaque daquela pessoa.

O som da porta se abrindo e passos se afastando se seguiu enquanto recobrava o controle de sua mente. Um cheiro pútrido que só ela parecia sentir se aproximou de suas narinas e então a voz sussurrou próximo de seu rosto.

— Uma boa filha a casa torna, não é minha Sarah? — malícia, escárnio, prepotência e uma espécie de tom vitorioso soava daquela voz bem baixo em seus ouvidos.

Novamente a sensação percorreu todo o corpo dela, reagindo instantaneamente em alerta a tudo o que aquele homem representava. Sim, era a voz de um homem e ela sabia que ele tinha tirado o pior dela.

— Quem é você? — a garota alada conseguiu balbuciar.

— Minha querida, não se lembra de mim? Passamos tanto tempo juntos, tantas décadas. Que lástima Sarah — ele completou com ironia.

— Onde? Onde eles estão? — perguntou enquanto sua mente rodopiava.

— Quem? Seus amigos? Ah! Estão bem, fique tranquila, não faremos nada com eles por enquanto, mas isso vai depender de você, querida.

— Não ouse... — ela tossiu sem conseguir completar a frase — água... por favor.

A garganta de Sarah estava seca, como se houvessem sugado toda a umidade dela. O homem trouxe uma espécie de canudinho onde sugou o líquido gelado para dentro de seu corpo. Um pequeno alívio no meio da dor que seguia aumentando pelo seu corpo.

— O que você fará comigo? — perguntou e agora conseguiu olhar para o rosto do homem.

— É muito cedo para você saber ainda. Não vamos correr o risco de que você fuja novamente, então fique aqui e descanse. Ainda temos muito o que fazer — o homem piscou para ela, a garota estava paralisada. O rosto que ela viu lhe era familiar, extremamente familiar, mas estava perdido em algum lugar de sua memória.

Sem tempo para balbuciar a resposta, ele colocou uma máscara com gás em seu rosto e novamente a escuridão a tomou.

...

Ah! Agora eu sabia. Eu vi aquele homem no dia em que minha vida acabou. No dia em que perdi tudo que mais amava na vida, o dia em que tentei matar meu pai. Foi a voz dele que ordenou que seus homens me segurassem, foi o rosto dele o último que vi naquele dia.

Minhas memórias estavam confusas, o tempo que eu havia perdido estava voltando lentamente, como se aquele rosto maldito desbloqueasse o pior em mim. Os dias de sofrimento, cativeiro, testes, exames e coleta de inúmeros pedaços do meu corpo. Minha mente abria cada memória esquecida, cada dor sentida, era como se eu tivesse aberto as portas para um show de horrores.

Os dias naquele lugar foram muitos, eu perdi a conta quando a dor se submeteu ao meu senso de tempo. Não havia nomes e nem vozes em minhas memórias, apenas o rosto maldito daquele homem. Anos de minha existência perdidos, eu vivia dopada, meu corpo não tinha forças, me deixavam acordada apenas para estudar as reações do meu cérebro. Eu era apenas uma cobaia, um rato de laboratório para aqueles homens.

Ele havia me dito que eu havia fugido, mas não havia registro em minha mente sobre isso, as imagens ainda eram borrões diante dos meus olhos, misturadas com a agonia de não saber onde Édgar e Âmbar estavam.

Dessa vez não, eles não fariam o que quisessem comigo, eu não perderia mais ninguém e não, eu não vou ficar inerte novamente.

— Não sei se você está aí, mas naquela época eu não sabia de sua existência ou mesmo que você poderia entrar em contato comigo, então é a hora de aparecer e me ajudar com o que quer que seja a coisa que me fez assim.

Tentei em vão falar com uma voz que poderia muito bem ser um surto psicótico criado pelo meu cérebro, mas lá no fundo algo me dizia que não era bem isso. Não estava certo tudo aquilo, eu não ganhei poderes da noite para o dia, não é mesmo? Então era chegada a hora de um esclarecimento.

— Aava! Apareça! — gritei novamente no abismo em que era a minha mente — Aava!

Um clarão se seguiu e eu me lembrei exatamente de como e onde eu estava todo aquele tempo, era exatamente ali, eu estava presa todo aquele tempo naquela base, aos pés do monte Santa Helena, o centro Hawkings e eu havia levado Édgar e Âmbar para lá, sem nem mesmo lembrar que ali foi o lugar em que eu perdi todo o resto da minha vida. Meu sangue ferveu, eu podia sentir mesmo desacordada que meu coração batia rapidamente, meu corpo tremia de raiva, medo e eu suava, um suor frio distante que deixava minha boca ainda mais seca. Um calafrio percorreu a minha espinha findando-se em minha nuca que latejava forte agora. Eu entrei em desespero.

— Sarah...Sarah... respire...respire — a voz enfim voltou a soar pela minha mente.

— Por favor, por favor, me ajude! — eu não conseguia conter a reação que se desencadeava daquela memória, o medo estava me corroendo por dentro.

— Eu estou aqui com você, respire...respire... Sarah... acorde!

...

Passos ecoaram por detrás da porta da sala branca, fria e clara onde a haviam colocado. Ela acordou naquele mesmo instante ofegante, se debatendo, tentando se livrar das amarras enquanto sua força era sugada pelo o que quer que estavam administrando em sua veia. A porta se abriu e o homem que assombrava as memórias da garota alada se aproximou observando com atenção seu rosto.

— Você está sangrando, o que você fez? — ele levou as mãos ao sangue que escorria pelo rosto de Sarah.

— Me desamarre, por favor — ela pediu.

— Minha querida, você sabe que não posso fazer isso, sabe que não vou deixar que saia daqui. Fique tranquila, vamos te limpar e você dormirá de novo, parece que seu organismo já se acostumou com a droga nova. Você evoluiu bastante — ele lançou um olhar presunçoso para ela.

— Eu não consigo respirar — ela implorou.

— Você vai dormir já, já — o homem pegou uma seringa na mesa de utensílios ao lado da maca onde Sarah estava e inseriu o conteúdo em seu acesso.

Em menos de dez segundos sua visão ficou turva e a escuridão retomou o seu lugar deixando ao longe a voz odiosa do homem dizendo para ela palavras vazias de conforto.

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