Prólogo

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Muitas pessoas não se lembram da época em que tinham 8 anos de idade, mas eu me lembro perfeitamente. Lembro como se tivesse sido ontem, o dia em que a paz ficou submersa ao caos, o dia em que uma nação tremeu diante de tanques de guerra, o dia em que eu perdi tudo.
Eu era uma garotinha americana de apenas oito anos, morava na Coréia do Sul com minha madrasta e meu irmãozinho Nate, de cinco anos. Mamãe faleceu depois do parto de Nate, dois anos depois papai voltou para a Coréia e casou-se com Ji Hye, uma madrasta pra lá de legal, mas que por outro lado bem...estressada. Como muitos já sabem, todo homem nascido na Coréia do Sul deve cumprir dois anos no serviço militar, então, depois de Nate completar quatro anos, papai partiu. A ausência dele me deixou realmente muito triste, eu tinha Ji Hye, mas ela não era a minha mãe, se esforçava, mas não agia como uma. Eu sentia um vazio dentro de mim, me sentia incompleta, e ficava apenas na esperança de que ele voltaria o mais rápido possível.
--Flashback On - Dez anos atrás--
-Amy, o que acha de ir brincar no parquinho ali da outra rua? - Disse Ji Hye.
-Não quero. - Falei.
-Vamos, chame as suas amiguinhas, se você ficar o tempo todo dentro de casa vai acabar ficando doente.
Resmunguei mas acabei indo. Ao chegar no pequeno parquinho, me sentei na velha balança, e de lá fiquei observando Nate e as outras crianças brincarem enquanto a leve brisa do vento passava por meus cabelos.
-Hey menina, quer que eu te empurre? - Disse um garotinho.
Olhei para os lados e respondi:
-E-Eu?
-Sim.
Antes mesmo que eu pudesse dizer mais alguma coisa ele correu para trás da balança e começou a dar pequenos impulsos, e depois foi aumentando. Eu estava envergonhada, mas completamente feliz, é dificil eu me misturar e fazer amiguinhos, mais difícil ainda é se oferecerem pra brincar comigo por vontade própria. Me acham um pouco estranha por eu ficar mais na minha, sempre quieta e cabisbaixa, fora a minha aparência, por mais que meu pai seja coreano puxei os longos cabelos castanhos e os lindos olhos verdes ocidentais de minha mãe.
Quando a balança parou, o garotinho ficou me olhando e sorrindo. Tão meigo, tão fofo, sorriso banguela, mas contagiante, pálpebras inchadas e um cabelo tigelinha bem preto, acho que ele é um ano mais velho que eu, talvez dois.
-Do que você quer brincar agora? - Disse ele.
Tentei desfarçar a timidez mas não deu muito certo.
-Hummmm, deixa eu pensar. Que tal fazer castelos de areia?
-Eu...não sei fazer.. - Falei, bem baixinho.
-Ah, eu te ensino! - Disse ele. - Espera aqui.
Ele correu até o banco onde tinha uma moça e ela lhe entregou uma sacola, em seguida ele voltou até onde eu estava.
-Senta ai. - Disse ele se sentando na areia.
Me sentei e ele começou a tirar os baldes e moldes para começar a fazer o castelo. Ele me pediu pra colocar areia em todos os moldes enquanto ele pegava um pouquinho de água, quando voltou ele começou a colocar um pouquinho da mesma em cada um dos moldes.
-Essa areia é muito seca, se a gente fizer o castelo com ela assim ele vai desmoronar, mas se a gente colocar um pouquinho de água a areia vai ficar mais pesada e assim da pra fazer um castelo bem grandão. - Disse ele.
Enquanto ele preparava a areia, eu observava tudo com muita atenção para aprender.
-Pronto! Quer começar a montar? - Disse ele.
-Ér...melhor não...começa você.
-Okay, olha só.
Ele começou a montar cuidadosamente, e eu apenas olhando atentamente ali do lado dele. Alguns minutos depois ele terminou, wow ficou realmente muito bonito.
-Pronto! Agora falta a bandeira.
-Bandeira?
-Alguma coisa pra colocar na parte mais alta do castelo! Vem, vamos procurar.
Ele se levantou e esperou eu levantar também, em seguida corremos até as árvores do parquinho pra procurar essa "bandeira". Procuramos e procuramos, mas nada tava bom, até que eu avistei uma flor com grandes pétalas laranjas e um pequeno miolo branco no galho de uma árvore e apontei para ela.
-Você gostou? - Disse ele.
Fiz sinal que sim com a cabeça.
-Ok, vou pegar.
-Mas..é meio alto..
-Danada.
Sem pensar duas vezes ele começou a escalar a árvore, o galho não era difícil de se alcançar....para um adulto. Fiquei bem surpresa dele conseguir ter subido naquilo e pegado a flor, mas na hora de descer ele escorregou o pé sem querer e caiu sentado no chão.
-Ai! - Resmungou.
-Você ta bem?
-To sim, hehe.
Apontei para um pequeno corte no joelho dele.
-Ah, nem doeu..
-Mas seus olhos estão cheios de lágrimas..
-Ah, é que na hora que eu cai entrou sujeira no meu olho...
-Hummm..
O olhei meio desconfiada, tenho certeza de que aquele tombo doeu. Coincidentemente eu tinha um band-aid no meu bolso, me abaixei e o coloquei no pequeno corte.
-Brigado.. - Disse ele meio sem graça.
Sorri ainda envergonhada, como um "denada".
-Mas eu consegui pegar! - Disse ele me entregando a flor, um pouquinho amassada.
-Vem, vamos colocar ela no castelo!. - Disse ele indo na frente.
Ao chegar no castelo ele me deixou colocar a flor no lugar mais alto. Coloquei com todo o cuidado do mundo, para não estragar. Ficou muito, mas muito bonito, o garoto então ficou todo orgulhoso, e eu também fiquei muito contente. Mas nossa felicidade não durou muito, um outro garotinho passou correndo e esbarrou no nosso castelho fazendo com que parte dele desmoronasse. O garotinho ficou sem reação, a expressão dele era de como se alguém tivesse partido o coração dele por inteiro. Ele pegou um dos baldes e tacou no castelo, fazendo com que o resto do mesmo caisse, em seguida o garotinho ficou olhando pro outro menino que tinha derrubado seu castelo com cara de taxo. Não me aguentei e soltei uma gargalhada fofa, ele me olhou meio surpreso e em seguida começou a rir também.
-Hey, Amy! Está ficando tarde, vamos para casa! Amanhã nós voltamos! - Chamou Ji Hye.
-Tenho que ir... - Falei.
-Onde você mora?
-Naquela rua. - Apontei.
-Sério? Eu também!
Sorri. Fiquei realmente muito feliz em saber que tinha um amigo que mora na mesma rua que eu.
-Como moramos perto um do outro poderemos brincar todos os dias! - Disse ele, sorrindo.
Retribui o sorriso e disse:
-Tchau, até amanhã. - Em seguida fui caminhando até Ji Hye.
-Espera!
Olhei para trás.
-Você não me disse o seu nome.
-Ah...Amy...Amy Lee.
-Sou Jimin, Park Jimin.
Sorri e falei:
-Até amanhã, Jimin.
-Até amanhã Amy. - Disse ele acenando.
Fui embora com um sorriso lá na orelha. No dia seguinte, no mesmo horário, nós voltamos para o parquinho. Procurei Jimin por toda parte, mas não o encontrei. Voltei para a minha velha e solitária balança, e lá fiquei por alguns minutos até que:
-Oi. - Uma voz surgiu atrás de mim.
Me virei e abri um enorme sorriso ao ver que era Jimin.
-Oi. - Respondi.
Ele estava com dois grandes sorvetes na mão.
-Quer um? É de chocolate. - Disse ele, sorrindo como sempre.
Eu estava com muita vergonha de aceitar, e acho que ele percebeu.
-Ah não tenha vergonha, pegue, vai derreter.
Delicadamente eu peguei e ele sentou na balança ao lado, ficamos ali tomando sorvete por vários minutos, ao terminar corremos assustar os pombos, e mais uma tarde de brincadeiras se passou.
Ji Hye estava mais feliz por eu finalmente ter arranjado um amigo do que eu mesma, ela começou a me levar no parquinho para brincar com ele todos os dias, até fez amizade com a mãe dele e assim quando ela não podia me levar no parquinho ou estivesse chovendo, Jimin ia até minha casa para brincar, e vice-versa.
Nos tornamos amigos, melhores amigos. Éramos inseparáveis, como irmãos. Era eu e ele, ele e eu. Ah, e tinha o Nate também, mas como ele era mais novo não participava de todas as brincadeiras, o que o deixava bem bravinho as vezes. Finalmente eu tinha um amigo, um companheiro, não me sentia mais sozinha, e estava ansiosa para apresentá-lo ao papai.
Meu aniversário de 9 anos estava quase chegando, estava tudo indo bem, até esse dia chegar. Até o dia em que palavras como paz e tranquilidade simplesmente desapareceram. O dia em que a Coréia do Norte declarou guerra contra o Sul. Naquele dia, Ji Hye teve ir resolver coisas do trabalho, e então a irmã mais velha de Jimin levou Nate, Jimin e eu para passear no centro da cidade.
Era uma tarde ensolarada e tranquila, estavamos brincando na pracinha, até que tudo começou. Foi repentino, do nada, militares começaram a fechar as ruas, dezenas de soltados e policiais começaram a aparecer, jornalistas falando para irmos para nossas casas o mais rápido possível e não sair de lá em todos os telões, e a cidade virou um caos. Pessoas correndo pra lá e pra cá, adentrando o mercado para pegar mantimentos antes que acabassem. E então a desordem e o desespero tomaram conta do país em questão de segundos.
Perdi a irmã de Jimin de vista em meio a multidão que corria pra lá e pra cá, peguei mão de Nate e corri para perto do chafariz, o abracei, estava assustada, não sabia o que estava acontecendo direito.
-Amy! - Ouvi alguém me chamar, era Jimin.
-Venha, vamos sair daqui! - Disse ele pegando minha mão.
Nós três corremos em meio à aquela multidão de mãos dadas, eu não fazia a mínima ideia de pra onde estávamos indo ou como ir embora, apenas seguia Jimin. Alguns minutos depois chegamos em frente a uma enorme igreja que ficava a poucos metros da pracinha.
-Entrem ai dentro e esperem por mim! - Disse Jimin.
-M-Mas, onde você vai?!
-Eu vou achar a minha irmã! Ficarão seguros aqui, apenas esperem por mim e não saiam dai de jeito nenhum, entenderam?!
-T-Ta bom, cuidado..
Em seguida ele abriu a porta da igreja e correu até a multidão novamente, uma freira apareceu na porta e disse:
-O que estão fazendo aqui pequeninos? Vamos, entrem, é perigoso ficar aqui fora!
Entramos e nos sentamos em um dos bancos, e então esperamos. Depois de umas duas horas o silêncio predominou, e então tiros e gritarias começaram e não pararam mais. As freiras nos levaram para o porão de igreja, nos abraçaram para nos sentirmos protegidos e oravam sem parar. Só pensava em Jimin, Ji Hye e papai, o som daquele caos lá fora atordoava meus ouvidos, eu queria passar uma imagem tranquila para meu irmãozinho, mas ambos não conseguiamos parar de chorar.
A guerro durou cerca de quatro dias. Quatro dias de desespero, até que o presidente do Sul fez um "acordo" com o Norte, e a guerra foi suspendida.
Os engenheiros começaram a reparar os danos das cidades, e "colocar no lugar" tudo aquilo que foi destruído. Quando soube que a guerra havia acabado, corri até a porta central da igreja e a abri, me deparando com aquele cenário de destroços.
-JIMIN! JI HYE! - Eu chamava, mas nada, nenhum sinal.
Aos poucos a cidade foi voltando ao "normal", todos os dias eu chamava por Ji Hye e os outros, mas nunca obtive uma resposta. Não tive outra alternativa a não ser esperar. As freiras perguntaram em abrigos e refugiados para ver se alguém conhecia eles ou sabia de algo sobre eles, mas ninguém sabia de nada. O tempo foi passando, e ao perceber que ninguém iria aparecer as freiras nos levaram para um convento, mas mesmo assim, continuei a esperar por eles. Passaram-se dias, meses, anos. Passaram-se longos sete anos, para que eu tomasse a decisão de sair do convento. Depois de completar 15 anos, sai do convento e arrumei um emprego, o qual o salário era o suficiente para pagar o aluguel de uma pequena casa e saciar as necessidades. Quando eu estava conseguindo me manter sozinha e começar a levar a vida como uma pessoa normal, voltei para o convento para buscar Nate, e nós dois passamos a morar sozinhos. Matriculei ele numa escola de período integral bem perto de casa, e voltei a estudar também, perdi um ano pois estava trabalhando o dia inteiro praticamente todos os dias da semana, mas agora irei voltar a estudar de manhã e trabalhar a tarde.
Um dia na volta da escola, passei no memorial da guerra que ficava no centro da velha pracinha em que brincava naquele dia, nele continha inúmeros nomes de vítimas inocentes que se foram naqueles quatro dias de desespero. Foi então em que eu achei o nome dela: a irmã de Jimin. Uma lágrima escorreu de meus olhos ao ler o nome dela. Mas... e Jimin? Ji Hye? Procurei seus nomes em todos os lugares, mas não os encontrei. O que houve com eles? Pra onde eles foram? Eles estão bem? Por que Jimin não voltou? Por que Ji Hye não me procurou? Essas perguntas não saiam de minha cabeça no caminho de volta para casa.
--Flashback Off - Atualmente--
Hoje completam-se dez anos. Dez anos se perguntando o porquê de ninguém ter aparecido. Dez anos de saudade.
Este é meu último ano na escola, ainda não sei o que vou fazer depois que terminar, se vou fazer uma faculdade, ou se volto pros EUA e continuo minha vida com Nate lá. Já pensei em ir embora muitas vezes, mas eu não posso ir sem descobrir o que houve com Ji Hye e os outros, caso contrário, minha alma nunca descansará em paz.
Dizem que quando uma pessoa acredita em coisas que são praticamente impossíveis de acontecer, ela está delirando. Sempre que acontece algo bom comigo, pode-se ter quase 99% de certeza de que algo vai dar errado depois, mas também sempre acreditei que isso um dia mudaria, que um dia meu coração pudesse ter paz e sossego, sem preocupações com o dia de amanhã. Mas se for assim como dizem, então minha vida é um grande delírio.

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