CENA VII

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Verona. Um quarto em casa de Júlia. Entram Júlia e Luceta.

JÚLIA — Gentil Luceta, ajuda-me, aconselha-me. Embora amor o assunto agora seja — já que és a lousa em que meus pensamentos caracteres visíveis adquiriram — sugere-me algum meio compatível com minha dignidade, porque eu possa ir até onde se encontra o meu Proteu.

LUCETA — Ah! penoso é o caminho e muito longo.

JÚLIA — Jamais uma sincera peregrina sentiu cansaço para medir remos com seus passos incertos; muito menos há de cansar-se quem dispõe das asas do amor para ir se unir a um namorado de tanta perfeição como Proteu.

LUCETA — Convirá esperar que ele retorne.

JÚLIA — E não não sabes que minha alma vive tão-só de seus olhares? Tem piedade da maneira em que me acho, pela falta desse alimento, há tanto, suspirado. Se de ciência própria conhecesses as impressões do amor, antes pensaras em acender com neve chama ardente, do que extinguir o amor com teus discursos.

LUCETA — Não pretendo apagar o amor ardente que vos consome; tão-somente quero o ardor extremo atenuar do fogo, porque não queime além do que é razoável.

JÚLIA — Quanto mais o abafares, mais abrasa. A correntinha que se esgueira plácida, não o ignoras, detida se enfurece; mas, quando o belo curso encontra livre, faz agradável música com os seixos e beijos dá nos juntos namorados que em seu caminho acaso a encontrar venha: desta arte, após serpear alegremente, no selvagem oceano ele se atira. Consente, pois, que eu vá; não me detenhas. Tão paciente serei como um regato; todos os passos cansativos, simples brinquedos me serão, até que o último me leve ao meu amor, onde em repouso me deixarei ficar, como no Elísio fica a alma eleita, após trabalhos grandes.

LUCETA — Que vestes pretendeis usar para isso?

JÚLIA — Não trajes femininos, que é preciso não me expor ao encontro licencioso dos homens atrevidos. Minha cara Luceta, arranja-me uma roupa própria de algum pajem de boa compostura.

LUCETA — Pelo que vejo, Vossa Senhoria vai cortar os cabelos?

JÚLIA — Não, menina; pois com fios de seda farei vinte nós de amor verdadeiros. Semelhante originalidade não destoa do todo de um rapaz que aparentasse mais idade do que eu mostrar pretendo.

LUCETA — E os calções, de que modo hei de cortá-los?

JÚLIA — O mesmo fora se me perguntasses: "Como quereis, caro senhor, que seja a saia na largura?" Pouco importa, boa Luceta, a moda que escolheres.

LUCETA — Precisareis, então, usar braguilha.

JÚLIA — Ora, Luceta! Ficaria feio.

LUCETA — Calça redonda vale menos, hoje, do que alfinete, a menos que tivésseis onde espetar os vossos alfinetes.

JÚLIA — Pelo amor que me tens, cara Luceta, prepara-me o que achares mais decente. Mas, rapariga, dize-me: como achas que pensarás o mundo a meu respeito por empreender uma viagem destas, tão do pé para a mão? Receio muito que isso me prejudique de algum modo.

LUCETA — Se assim pensais, convém ficar em casa.

JÚLIA — Isso é o que não farei.

LUCETA — Então não deis ouvido a comentários e segui sem demora. Caso aprove Proteu, quando voltar, o que hajais feito, de nada valerá qualquer censura, após terdes partido. Mas receio que ele vos desaprove tal medida.

JÚLIA — Isso, boa Luceta, não me causa qualquer preocupação. Mil juramentos, um oceano de lágrimas, instâncias de um amor infinito, me asseguram da parte dele uma acolhida alegre.

LUCETA — Isso tudo a serviço sempre esteve dos homens inconstantes.

JÚLIA — Homens baixos, que para fins mesquinhos os empregam. Mas estrelas sinceras influíram no berço de Proteu. Suas palavras são vínculos sagrados; suas juras, outros tantos oráculos; sincero seu amor sempre foi, imaculados os pensamentos. Quando chora, as lágrimas lhe traduzem mensagem comovente do coração, que se acha tão distante da fraude, quanto a terra do alto céu.

LUCETA — Rezai para encontrá-lo desse jeito.

JÚLIA — Se me amas, não lhe faças a injustiça de apresentar com cores menos gratas sua fidelidade. Caso queiras minha amizade, é força que o aprecies. Vem comigo até o quarto, porque possas tomar nota de tudo o que preciso para essa viagem com que tanto sonho. Contigo fica tudo quanto tenho: reputação, bens móveis, propriedades. Mas, em compensação, tens de tirar-me daqui sem mais delongas. Não repliques. Vamos pôr em ação nosso projeto; impaciente me deixa essa demora.

(Saem.)

Os Dois Cavalheiros de Verona (1598)Onde histórias criam vida. Descubra agora