Cena II

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Milão. A corte do palácio do duque. Entra Proteu.

PROTEU — Já traí Valentino; ora é preciso se injusto com Túrio. Sob a capa de fazer-lhe o elogio, acesso obtive junto de minha amada. É, porém, Sílvia por demais bela, verdadeira e santa para ceder a desvaliosas dádivas, ela me faz lembrar o meu perjuro, por ter deixado a minha amada Júlia. Mas apesar de todos os sarcasmos com que ela me atormenta, suficientes para desesperar qualquer amante, meu amor, semelhante a um cão rasteiro, mais forte fica e mais a acaricia. Túrio vem vindo. É necessário, agora, postarmo-nos em baixo da janela de Sílvia, e deliciarmos-lhe os ouvidos com a distração de alguma serenata.

(Entra Túrio com músicos.)

TÚRIO — Então, senhor Proteu, escorregastes na nossa frente.

PROTEU — Sim, meu caro Túrio; pois bem sabeis que o amor sempre escorrega por onde andar não pode.

TÚRIO — Sei: contudo, penso que não amais neste lugar.

PROTEU — Se tal não fosse, longe me encontrara.

TÚRIO — A quem? A Sílvia?

PROTEU — Sim, por vossa conta.

TÚRIO — Muito obrigado. E agora, meus senhores, com alegria começai a música.

(O hoteleiro e Júlia aparecem nos fundos; Júlia em trajes masculinos.)

HOTELEIRO — Que tendes, meu jovem hóspede? Pareceis-me melancólico. De que se trata?

JÚLIA — Não é nada, hoteleiro; é que não posso ficar alegre.

HOTELEIRO — Vinde comigo; vou deixar-vos alegre, levando-vos para um lugar onde podereis ver o cavalheiro de que me pedistes notícias.

JÚLIA — E poderei ouvir-lhe a voz?

HOTELEIRO — Sem dúvida.

JÚLIA — Será música para mim.

(Ouve-se música.)

HOTELEIRO — Ouvi! Ouvi!

JÚLIA — Ele se encontra entre os músicos?

HOTELEIRO — Encontra-se. Mas, silêncio. Ouçamo-los. (Canção)

Quem é Sílvia? Quem é ela,
que os jovens todos cativa?
É sábia, divina e bela;
entre as deusas, vera diva
de compostura singela.
É tão boa quanto é linda?
Sim, que a beleza é bondade
Cupido nela acha infinda,
deslumbrante claridade
que suas trevas deslinda.
Então a Sílvia cantemos,
por ser ela primorosa;
sobre os mortais a exalcemos;
nesta homenagem donosa
se exaltem seus dons supremos.

HOTELEIRO — Que acontece? Ficastes mais triste agora? Que é isso, homem? Não vos agradou a música?

JÚLIA — Estais enganado; não me agradei do músico.

HOTELEIRO — Por quê, gentil menino?

JÚLIA — Por ser falso no canto.

HOTELEIRO — Como assim? Estarão desafinadas as cordas do instrumento?

JÚLIA — Não; mas com tanta falsidade puxa ele as cordas, que me abala até às cordas do coração.

HOTELEIRO — Sois dotado de ouvido muito delicado.

JÚLIA — É certo. Desejara ser surdo; isso me oprime o coração.

HOTELEIRO — Pelo que vejo, não apreciais música.

JÚLIA — Quando é desafinada, acho insuportável.

HOTELEIRO — Prestai atenção, que o tema, agora, é outro.

JÚLIA — Esse novo tema é que acaba comigo.

HOTELEIRO — Queríeis, então, que tocassem sempre a mesma coisa?

JÚLIA — Desejara que uma pessoa tocasse sempre a mesma coisa. Mas, dizei-me, hoteleiro: o senhor Proteu de que falamos vem muitas vezes à casa desta senhorita?

HOTELEIRO — Vou repetir-vos o que me disse o seu criado Launce: ele a adora acima de tudo.

JÚLIA — E onde está Launce?

HOTELEIRO — Foi procurar o seu cachorro, que por determinação do patrão ele deve levar de presente a essa senhora.

JÚLIA — Silêncio! Ficai de lado; a companhia se dispersa.

PROTEU — Ânimo, senhor Túrio! De tal modo vou pleitear vossa causa, que obrigado vos vereis a elogiar os resultados.

TÚRIO — Onde nos encontramos?

PROTEU — Junto ao poço de São Gregório.

TÚRIO — Adeus. (Sai Túrio com os músicos.)

(Sílvia aparece na janela de seu quarto.)

PROTEU — Senhorita, boa-noite a Vossa Graça.

SÍLVIA — Muito obrigada a todos pela música. Quem falou neste instante?

PROTEU — Uma pessoa, senhorita, que pronto conhecereis pelo timbre da voz, se a imaculada verdade de seu peito conhecêsseis.

SÍLVIA — Senhor Proteu, parece-me.

PROTEU — Proteu, gentil senhora, e vosso servo.

SÍLVIA — Que desejais?

PROTEU — Fazer-vos a vontade.

SÍLVIA — Ireis fazê-la, pois desejo apenas que vos vades deitar em vossa cama. Homem sutil, perjuro, falso, hipócrita! Supões-me tão estúpida e inconsciente que possa acreditar nessas lisonjas que já embaíram tantas outras jovens? Vai procurar a tua amada e pede-lhe que te perdoe, que eu — ouve-me a pálida soberana da noite — tão distante me acho de dar ouvidos a teus votos, que por tua insistência vergonhosa sinto desprezo e nojo e me censuro por perder tempo a conversar contigo.

PROTEU — Juro-te, coração, que amor eu tive por uma jovem que já não existe.

JÚLIA (à parte) — Que é falso, se eu falasse, afirmaria, pois sei que ela inumada não se encontra.

SÍLVIA — É possível. Contudo, Valentino, teu amigo, ainda vive, e tu bem sabes que noiva dele eu sou. Não te envergonhas de ofendê-lo com tuas insistências?

PROTEU — Também se diz que Valentino é morto.

SÍLVIA — Então me considera também morta, pois posso asseverar-te que em seu túmulo se encontra o meu amor.

PROTEU — Meiga senhora, permiti que da terra ora o retire.

SÍLVIA — Procura a sepultura da que amaste e seu amor exuma, ou, pelo menos, enterra o teu na mesma sepultura.

JÚLIA (à parte) — Semelhante conselho ele não ouve.

PROTEU — Se o coração, senhora, tendes duro, recompensai ao menos meus anelos com o retrato que o quarto vos enfeita. Com ele falarei; ardentes lágrimas hei de lhe oferecer, fundos suspiros. Já que a essência de vossa perfeição a outrem se acha votada, sou apenas uma sombra fugaz que à sombra vossa vai revelar amor sincero e puro.

JÚLIA (à parte) — Se fosse a própria essência, estou bem certa, por fim a enganarias, reduzindo-a à minha condição de simples sombra.

SÍLVIA — Não me alegra saber que sou vosso ídolo. Mas já que apraz à vossa falsidade adorar sombras e aparências falsas, mandai um portador amanhã cedo buscar o meu retrato. Bom repouso.

PROTEU — Repousarei tal como o condenado que só espera a manhã para ser morto.

(Sai Proteu; Sílvia se recolhe.)

JÚLIA — Vamos, hoteleiro?

HOTELEIRO — Por minha salvação, estava quase a dormir.

JÚLIA — Por obséquio, onde mora o senhor Proteu?

HOTELEIRO — Ora, em minha casa. Por minha fé, penso que já é quase dia.

JÚLIA — Ainda não; nunca estive de vigília em noite assim, tão longa e tão pesada.

(Saem.)



Os Dois Cavalheiros de Verona (1598)Onde histórias criam vida. Descubra agora