22. A Concentração de Lumes

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Muitos criticam a famigerada "síndrome do protagonista" que, como o próprio nome diz, invade os protagonistas em um ponto superimportante da história — geralmente é um ponto decisivo, de vida ou morte, em que o personagem principal arrisca a própria vida, sendo imprudente, para salvar os demais personagens.

Porém, o que ninguém observa — e com "ninguém" eu me refiro àqueles que criticam, é o peso colocado nos ombros do protagonista ao longo de toda a narrativa. Sim, estou me usando como exemplo. Sério, nenhum dos caminhos que percorro parece me levar para a felicidade, é sempre uma mistura de cárcere privado — antes o internato e agora essa jaula branca — ou ciladas, que acontecem por decisões minhas e que afetam pessoas que eu amo — quando fechei o acordo com os Cadente e eles roubaram a ONG que Anna e eu fundamos.

E nem é querendo me fazer de coitada, mas, caramba, meus pais me jogaram naquela prisão escolar sem me darem um motivo plausível e hoje, anos mais tarde, eu descubro que pode ter sido porque eles estavam morrendo... Morrendo porque decidiram me gerar a partir de um trato com uma bruxa dos bebês.

Aparentemente, felicidade não é uma opção para os filhos de lume, ou talvez eu seja a azarada do grupo. Pergunto-me se todos passam por esses perrengues conflitantes ou se é um bônus exclusivo a mim. Mesmo que Raul, apesar de eu não querer pensar ou tocar no nome dele, também pareça lidar com as consequências de ter sangue mágico. Jamais esquecerei a cena dele deitado em sua cama, meio acordado, meio desacordado, falando de sangue. Não consigo tirar da cabeça a ideia de que Aura e Edgar coletam o sangue dele para produzir os medicamentos cadentes, assim como também cometem crimes ambientais caçando baleias para extrair seu óleo.

O mais louco de tudo isso é que meu destino está nas mãos de Marco, cuja índole eu nem sei se é descente. Tampouco sei se ele recebeu o vídeo em que Aura conversa com Xavier acerca das redes de choque para baleias.

Ali ela literalmente confessa ser mandante dos crimes, o que eu imagino que dê um belo escândalo nacional. Presa eu sei que ela não vai ser; e, se for, vai ser por dois dias até alguém pagar a fiança e ela voltar a viver em sociedade, fingindo que nada aconteceu — mas não sem antes postar um vídeo em suas redes sociais, vestida com roupas claras, a voz baixa e aveludada, um instrumental calmante de fundo e um discurso de auto evolução fajuto. Típico.

— Por favor, Marco, se você recebeu o vídeo, faz alguma coisa... — sussurro para mim mesma, me sentando à cama desconfortável e gélida que habita meu quarto.

Ainda estou de pijama. Não dá para me salvar de pijama. Além do mais, está ficando frio e eu estou praticamente descoberta. Eles vão me fornecer roupas mais cedo ou mais tarde, eu acho, afinal, se querem meu sangue, não faz sentido me matarem de hipotermia.

Dito e feito.

Com pouco menos de uma hora, alguém jogou um saco de roupas pela brecha achatada da porta. Não agradeço a quem quer que seja, afinal, estou sendo vítima de um sequestro. Vestimentas são o mínimo.

Desempacoto as roupas, inclino-as para o alto para ter uma visão melhor e fico cinco minutos parada, em completo silêncio, pasmada com o que meus olhos veem. É um macacão laranja de presidiário.

Isso é sério?

Que tipo de gente doente financia isso daqui?

Há sutiã, calcinha e também um absorvente suave dentro do pacote — ownn, como eles são empáticos. Queria que eles enfiassem toda essa empatia no fiofó deles.

Aproveito para enfim inaugurar o banheiro desse antro e até que é organizado. Simples, porém higienizado, composto por um chuveiro, uma privada, um lixeiro, uma pia com espelho e alguns produtos de higiene pessoal vagabundos, como um daqueles sabonetes baratos que mal espumam.

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