- Está linda, Vossa Alteza.- disse com um sorriso deveras sarcástico em seu rosto
- Vá se fuder.
Talvez, de início, possa pensar que sou alguém de vocabulário chulo, e meio picaresco (o que não me recuso ser em certos trechos desta história sobre a qual conto), contudo, deve ser pontuado que aquele espartilho maldito dificultava os ares de passar pelas cordas vocais, logo, mais fácil seria xingar minha querida companheira.
O vestido era longo e demasiado cheio para meu costume. Tinha suas bordas enfeitadas com pequenas pedrinhas coloridas, tão reluzentes que até eu mesma acreditaria em sua originalidade se não fosse a responsável por arranjá-las.
O reino de Amice era extremamente reconhecido por suas joalherias extravagantes, suas roupas que mais pareciam bolos enormes e de pouca autenticidade própria. O objetivo, sempre, era esbanjar, não importa o quanto se faziam de toscos e de certo risórios no processo. O rei Lavin possuía uma intrínseca e única vontade de reafirmar seu poderio perante os demais. Ou, talvez, este seu especial sentimento fosse para compensar algo que lhe faltasse...
De qualquer forma, ali estava eu, um grande bolo avermelhado de pedrinhas coloridas, pronto para entrar no grande salão dourado. Vídea, minha fiel imediata, estava já com a ridícula máscara - a qual mais se assemelhava com um grande pavão roxo em pleno acasalamento do que propriamente uma máscara-, junto com seu grande pudim de passas também lilás em volta do pequeno e magro corpo. Nossa missão? Uma. Roubar mais um típico rei de enorme alma algoz e orgulho de uma riqueza a qual, na verdade crua e dolorosa, nunca lhe pertenceu. Apesar de que, desta vez, confesso também que o vinho de Amice sempre se demonstrou um dos melhores de toda Ibérica, e sinceramente valeria a pena pegar emprestado parte da coleção pessoal da família real só pelo prazer da degustação.
Entrando de maneira triunfante, com um grande pássaro vermelho já amontoado em meus olhos e cabeça, isto é, o que os queridos burgueses, ou melhor, a alta sociedade ibérica denominava carinhosamente de "máscara socapa", suspirei:
- Não suporto essa música.- disse num tom quase suplicante, maldito espartilho francês- ou será inglês? Não bem me lembro.
- Eu sei.- Vídea falou como se já tivesse ouvido-me falar o mesmo mais de mil vezes nos últimos oito anos.- Você fala isso desde sempre, Astrid.
- Talvez esteja ficando repetitiva, contudo, nunca posso deixar de notar. Vamos em frente, os outros já se encontram no local combinado. Segunda parte do plano.- acenei levemente para a minha mais querida amiga, que, olhando de volta, seguiu para o grande - e extremamente irritante- salão dourado.
O palácio de Amice era, de certo, exatamente como descrito pela sua querida e mais nova narradora, meu caro leitor. Por todos os lados, infinitos arabescos intensamente dourados, iluminados e limpos demais para serem de verdade. Os adornos festivos da Noite Anual das Socapas pintavam o salão de forma maravilhosa, entretanto, não no sentido positivo da palavra em si. Com "maravilhosa", me refiro a algo tão fantástico que chega a ser supérfluo, típico dos Amice, a linhagem interminável dos intermináveis. Digo, eles sempre estiveram no poderio desde que podemos nos recordar. Não há uma alma sequer em toda Ibérica a qual, nunca nem jamais, tenha pensado na possibilidade dos Amice fora do governo. Era uma tradição, quase tão natural quanto a luz da linda estrela que nos ilumina, que acompanhava a família. Seus intensos olhos azuis ofuscantes, uma condescendência demasiado incômoda, a postura de superioridade. Percebe? Insuportáveis. À vista disso, já deve ter notado meu certo - e estritamente correto- ódio para com a linhagem. Contudo, para a curiosidade do meu caro leitor ou leitora se alastrar durante esta incrível e ilustre jornada, não contarei meus motivos para odiá-los. Apenas tenha em mente que os odeio.
Voltando para o momento, lá estava eu, circundando o dourado, passando, ou melhor tentando com aquele bolo vermelho envolto às minhas pernas, pela Alta Sociedade, procurando algum pequenino sinal da família anfitriã. Quando, de repente, senti um toque leve e sensível de uma luva sedosa. Virei-me para me deparar com um homem não muito mais alto, com um seguro e impecável terno branco, adornado nas mangas com as mais variadas pedras coloridas- dessa vez com certeza de verdade, ao contrário das minhas, lindas e fajutas. Segui meu olhar até os olhos... Olhos intensamente azuis. Imediatamente, curvei-me.
- Vossa...- falei, direcionando um aceno para que completasse, nunca havia visto aqueles olhos Amice antes.
- Alteza. Mas não precisa de tal formalidade, senhorita...- estendeu sua mão para mim.
- Lady Hawice.- estendi de volta a mão para que ele a beijasse.
- Este não é seu nome.
- Como disse?- encarei-o irritada, o que o fez rir um sorriso simples.
- Este não é seu nome. Mas, sem problemas. Entendo que alguns ainda queiram manter a discrição, apesar de não ser mais um requerimento para a Noite Anual de Socapas.- suspirou por dois segundos exatos, me fitando de cima a baixo- Gostaria de dançar?
- Não danço.
- Ah, com certeza dança.
- Como pode ter tanta certeza do que gosto ou não?
- Vejo em teus olhos.- disse de prontidão.
- Meus olhos?- perguntei, sarcástica.
- Sim. Os olhos são a janela da alma, sabia? E, apesar de estar usando no momento esse alado no rosto, os seus olhos não mentem. Você adora dançar.
- Hm.- ri de leve- Isso é um bom jogo de palavras românticas, mas não funcionam comigo, meu caro.
- Pelo menos parece que tirei um sorriso de sua cara emburrada.
- Não sou emburrada.
- Obviamente, mas com certeza está.
- Deve ser o Amice que está me emburrando, Alteza.
- Então, sabe que sou um Amice?- falou, aproximando-se. Já era possível sentir o cheiro suave de flores- talvez tropicais?- de seu corpo.
- Seus olhos te entregam, mesmo com o alado em seu rosto.- disse, encarando-o.
- Como eu disse, os olhos são a janela da alma. Agora, vamos dançar?
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Astrid
FantasyNa antiga e misteriosa Ibérica, uma figura deveras interessante, surgida de maneira ainda não conhecida, decide que era hora da tão inabalável dinastia Amice sair do poder. Assim, numa aventura que percorre as águas do Mediterrâneo, Astrid está pron...