A confiança, de certa forma sarcástica, mas interessante demais para deixar passar, era nova à minha perspectiva acerca dos Amice. Obviamente e possivelmente, aderi a ideia de que esta súbita disposição para com aqueles novos olhos os quais nunca antes havia visto estava relacionada diretamente ao fato mencionado. A postura sem igual, os cabelos penteados na mais "ordenada ordem", apesar dos poucos fios sobre a testa, e os olhos eram típicos de todos os homens da família. Contudo, devo confessar, seu olhar totalmente inusitado para meu conhecimento dispertara-me um -pontual- inclino para dizer sim.
O que não notara, caríssimo leitor, era que, no pouco tempo em que passeava pelas minhas curiosidades, a mão enluvada havia, rápida e espertamente, tomado a minha, aproveitando-se da falta de resposta. Normalmente - e também por certo- eu poderia tê-lo empurrado, mas não o fiz. Acompanhei-o até a pista, onde sua mão repousou sobre a cintura enjaulada pelo corset tão deveras sufocante - malditas sejam as tradições-, e a outra uniu-se à minha esquerda. Olhou para mim:
- Parece que um gato comera sua língua.- disse, divertido, enquanto eu acordava do meu devaneio.
- Apenas percebi que recusar a súplica por dançar de um dos anfitriões da festa não seria adequado.
- Súplica? A senhorita praticamente entregou-se aos meus braços. - sua sobrancelha, neste momento, levantava-se, mostrando seu ar tão cheio de si mesmo, típico.
- Nunca, Vossa Alteza.- falei, e logo, a música começou.
Esta música, em específico, era uma das características únicas do grande salão dourado. Conhecida pelo trabalho ímpar do violino, sua aura costumava levar os convidados, assim afirmava-se, para um recanto de paz e encantamento. Era sólida, entretanto, de jeito nenhum sem personalidade, posso confessar-lhe. Músicas de tal tipo, porém, poderiam ser encontradas em toda Ibérica, ainda assim, os Amice faziam primordial trabalho em encher-se de si, gritando metaforicamente a todos os mares sua "autenticidade".
Os cumprimentos, entre dama e cavalheiro, eram os mesmos. Nada que eu não pudesse adaptar-me. E, desta maneira, a dança iniciou-se silenciosamente entre nós dois. Digo que, naquele momento, estavam em mente os segmentos dos planos e, claro, se possuiria uma boa garrafa de vinho do próprio monarca até o fim da noite. Contudo, novamente, meus pensamentos foram interrompidos por o tal Amice em minha frente.
- Sabe, não sou anfitrião esta noite, penso até que nunca serei,- pausou, refletindo algo internamente ao olhar de forma rápida para o lado- pelo menos daqui.
- O que lhe faz pensar de tal jeito? É um Amice, logo...
- Sou, não sou? Apesar disso, a senhorita mal me reconheceu, tirando o fato de meus olhos terem me entregado.
- Realmente, posso confessar, e espero não te ofender, mas não o conheço.- sorri de lado, enquanto ele também soltava uma risada baixa divertida.
- Poderia até contar meu nome, porém, não me contas o seu.
- Já lhe falei, sou Lady...
- Não, não é, querida. Mas deixe, não é uma preocupação minha, pelo menos por agora.
Seus olhos ainda me fitavam com certa curiosidade, apesar de, em nenhum momento, parecer realmente estar no ímpeto de descobrir-me.
- Sabe...- dei uma breve pausa- ainda não me respondeu, Alteza. Não és o anfitrião por quê?
- Pensara eu que tinha conseguido escapar de suas dúvidas.
- Parece, então, que não é somente Vossa Alteza quem sabe observar bem.- olhei-o, este Amice não era tão insuportável quanto os outros, mas talvez fosse apenas por ser novo aos meus olhos. Logo, conclui, iria cansar-me deste também.
- Estudos. Viagens. A linhagem da minha família, como deve saber, é ampla. Sou um dos esquecidos filhos de nosso rei, nem perto de chegar ao trono. Entretanto, jamais pense que sinto certo remorso por isso, escolhi esta vida, afinal, por que perder a oportunidade de conhecer um mundo tão bonito somente por um salão tão dourado a ponto de doer os olhos?
- Realmente... É horrível este dourado por todo lado.- sorrimos.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Astrid
FantasiaNa antiga e misteriosa Ibérica, uma figura deveras interessante, surgida de maneira ainda não conhecida, decide que era hora da tão inabalável dinastia Amice sair do poder. Assim, numa aventura que percorre as águas do Mediterrâneo, Astrid está pron...