O Medo

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Os primeiros dias após o coma, se resumiram em autocomiseração e medo. Medo do tempo perdido, medo pelo que viria, sentia medo de encarar meu próprio reflexo, sabendo que não me reconhecia ali. Me paralisava pelo que aconteceu comigo e quanto dano isso causou.

A incerteza sobre tudo me anestesiava e eu me recusava a conversar com tia Irina ou as enfermeiras que vinham ao longo do dia cuidar de mim, tudo o que eu queria era dormir e acordar em uma realidade diferente, onde todo esse pesadelo teria fim.

O cheiro estéril do quarto de hospital e o barulho irritante dos aparelhos apitando o dia todo, só adicionava uma camada extra à minha infelicidade.

No terceiro dia após meu despertar o neurologista responsável pelo meu caso finalmente apareceu.
— Bom dia Mabel, como você se sente?

— Horrível. Quando eu tento andar meus músculos doem e eu vivo com sono.

— É bastante compreensível dado o tempo que esteve em coma. Seu cérebro precisa de adaptação para voltar à rotina. Você também deve iniciar atividades físicas leves como caminhada diariamente para estimular sua musculatura. Em duas semanas você pode retomar sua rotina de exercícios.

A enfermeira apertou alguns botões e a cama começou a se inclinar de modo que agora eu estava sentada sobre o leito.
— Vê aqui?
O doutor Tom apontou com a caneta para um ponto no papel em que meu cérebro estava estampado.

— A tomografia feita ontem, não mostra absolutamente nenhum dano,
Quanto aos demais exames, você está ótima, então já vou solicitar a suspensão da nutrição enteral e reintrodução alimentar via oral. A depender de como você se adapta novamente nas próximas vinte e quatro horas, poderá obter sua alta e voltar a sua rotina normal.

Deve ter ficado nítido o meu pavor, porque seu sorriso morreu e ele se inclinou para segurar minha mão suavemente.
— O que houve? Não se sente bem?

— Você vai me dar alta, mesmo estando com amnésia? Não é melhor saber porque eu a tenho antes?

— Se você estiver conseguindo se alimentar sozinha, eu vou te liberar. Quanto aos exames, fisicamente falando não há mais dano significativo, só não há nada que possa ser feito aqui no hospital para te ajudar a recuperar suas lembranças. Você deve ser acompanhada por um profissional de perto, mas o esperado é que retorne progressivamente, à medida que você se reinserir na sua rotina e revisitar momentos importantes da sua vida, claro com moderação.

— E como será isso? E se eu não me lembrar nunca? E se a pessoa que fez isso comigo estiver lá fora me esperando? Meus questionamentos nem estavam mais fazendo sentido, mas, eu estava falando com o medo pilotando minha mente.

A porta do quarto abriu e tia Irina entrou acompanhada de um rapaz bastante jovem. Ele parecia um pouco com tia Irina, a pele escura e brilhante como a dela.

Seu rosto era magro e fino como o de tia Irina, mas diferente dela. O garoto possuía traços mais firmes e negroides e as maçãs do rosto dele eram pronunciadas, seu pescoço alongado o fazia parecer bem alto e esguio vestido daquela maneira elegante. Ao contrário de tia Irina, que vestia-se de maneira casual com jeans e camiseta, esse rapaz exalava riqueza.

— Sua família e amigos estão aqui e irão te ajudar a se adaptar, e como eu disse antes, busque um psicólogo para te ajudar nessa fase. Você vai ficar bem, tenho certeza.

Enquanto o médico tentava me animar, tia Irina veio até mim e me beijou os cabelos enquanto o rapaz permaneceu parado no mesmo lugar parecendo assustado e deslocado.

— Oi meu amor, como você está? Oi doutor, bom dia.

— Bom dia Irina. Com licença, preciso acompanhar outros pacientes. O médico se retirou, deixando apenas nós três no quarto.

— Eu imagino como deve ser difícil lidar com tanta coisa ao mesmo tempo, querida, por isso trouxe seu irmão pra te levantar o moral.

— Irmão?

— Sim, seu irmão caçula, Maxwell. Venha Max, está tudo bem, você não vai assustá-la.

O rapaz veio até nós bastante sério e para ao lado da minha cama, ele olha para mim e finalmente percebo que Max é apenas um garoto que está tentando ser forte. Seus olhos estão com lágrimas não derramadas e seu lábio inferior está tremendo. Posso ver no fundo dos seus olhos castanhos o quanto está doendo nele o fato de que eu não posso reconhecê-lo.
Céus, ele é só um garoto!

Instintivamente sinto o desejo de proteger esse rapaz enorme de toda a dor. Estendo minha mão e encaixo nossos dedos. Vejo o lampejo de esperança em seu olhar castanho amendoado quando ele apertou forte minha mão.

— Bels?
O apelido doce em sua voz embargada soou como uma pequena pedrinha arremessada no lago escuro e vazio que era minha mente. Senti imediatamente as ondulações emocionais que Max causava em mim no instante em que meu peito inchou de amor por ele. Era como se o som de sua voz despertasse dentro de mim um emaranhado de sentimentos familiares. Parecia que vê-lo e ouvi-lo iluminou algo dentro de mim.

Lágrimas silenciosas escorregaram pelo meu rosto e nem sei porque ouvir esse apelido me deixou tão emocional, mas não tive forças para segurar as lágrimas.

— Hello, sunshine.

Não sei porque escolhi essas palavras, mas pareceu tão certo dizê-las. Senti que era exatamente assim sobre Max e eu. Ele era meu raio de sol. Seus braços longos me envolveram num aperto quente e forte ao passo que nossas lágrimas fluíram lavando toda aquela emoção.
Por alguns minutos ali, eu sinto um pouco de esperança também. Talvez seja bom pra mim sair desse hospital se eu estiver cercada de pessoas que me amam.

A visita de Max foi curta porque ele estava bastante cansado pela mudança de fuso horário, mas foi o suficiente para que eu soubesse brevemente sobre ele.
Maxwell tem 18 anos, é três anos e alguns meses mais novo que eu, e somos filhos de pais diferentes. Ele mora com o pai em Los Angeles, Califórnia e estuda no ensino médio, mas está de férias.

Ele me disse que éramos uma família com mamãe e o pai dele até seus cinco anos, quando meu pai me trouxe de volta para o Brasil. Só nos tornamos uma família unida novamente muitos anos depois. Conversamos bastante sobre nossas travessuras infantis, e seus olhos brilhavam enquanto ele contava com tanta devoção o quão especial foi cada momento que tivemos. Ele me contou como seu pai era como um pai para mim e tornou a chorar enquanto contava suas lembranças sobre nossa mãe.

Chorei junto com ele quando soube que ela morreu durante a pandemia de covid-19. Doeu não me lembrar, mas foi um alívio saber que eu não estava sozinha no mundo. Seria muito pior passar por tudo isso sem ter ninguém com quem conversar.

Depois de prometer que viria amanhã – em um português carregado de sotaque – e traria meu IPhone e uma caixa de brigadeiros, Max partiu para o hotel.

Conhecer Max me trouxe uma lufada de ar puro em meio ao furacão de sentimentos desagradáveis que me cercavam. Eu fiquei positivamente surpresa em como a presença dele afugenta meus medos, ele trouxe uma camada de esperança no meu peito, e eu consegui ter uma noite tranquila de sono pela primeira vez desde que acordei.

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F.L.A.M.EOnde histórias criam vida. Descubra agora