Acordou ao som marcante da voz de Elza Soares numa rádio, o vento quente marítimo cumprimentando seu corpo suado e dolorido. Abriu os olhos e, por um instante de ressaca forte, estranhou o quarto onde estava, se perguntando que caminhos tortos havia tomado neste carnaval. Um segundo corpo se jogou na cama ao lado, o cheiro fresco de ervas e de um banho recém tomado em contraste com o seu. Sentou-se com um suspiro, franzindo o cenho para a claridade.
"Aids é castigo de Deus, porque bicha é uma raça desgraçada." A voz grave leu o jornal com tom de riso, cigarro preso nos lábios. Virou-se, e quase se arrependeu da pontada na nuca.
"Que raios de bom dia, não?" Rio de Janeiro não se importou, soprando fumaça ao ar, o colar de contas azul escuro e vermelho sendo a única peça que vestia.
"O café tá na cozinha, paulistinha." Balançou o copo com a bebida escura, constatando a qualidade com pesar somente de ver a transparência e o monte de açúcar no fundo do copo. "E o telefone do lado do sofá."
"O telefone?" Jogou as pernas para fora do colchão, procurando por qualquer uma de suas roupas no quarto bem arrumado.
"Fiquei sabendo que papai tá te procurando." Júnior congelou por um instante, um suspiro longo e pesado quando puxou os lençóis, enrolando-se neles ao se levantar. Vitor se queixou às suas costas, com provocações mundanas enquanto se arrastava pelo apartamento que mais parecia uma loja de antiguidades classudas.
Puxando o aparelho vermelho berrante para seu colo, aproveitou-se do fio comprido para se acomodar nas almofadas confortáveis, peso da folia cobrando o preço enquanto discava o número residencial de seu Estado.
Década de 1980, e Paulo Júnior tinha… Bem, já teve dias melhores. As maravilhas do mundo não o surpreendem como antes, e estar no topo o dava a sensação de monotonia. As novidades sobre ele estavam cada vez mais baixas (monstro de concreto, incêndios de Andraus e Joelma, uma epidemia de AIDS no Brasil) e sua visão estava limitada ao que via à sua frente, não mais no céu acima. Tanto havia mudado, e São Paulo amadureceu e envelheceu mais rápido do que gostaria.
Com um riso irônico, lembrou-se da manchete que Rio o leu minutos atrás. Bicha, eles o chamavam muito disto agora – mas não chegava ao seu orgulho e feria sua alma, não mais. Diria que, tendo chegado a opacidade de dias melancólicos mais uma vez, esta era a última peça de orgulho que lutava para manter de pé.
"Aqui é o Estado de São Paulo, se está ouvindo essa mensagem-" O paulistano mordeu o lábio inferior, olhar fixado na máscara de bate-bola vestida por cima de uma Carranca do vale do rio São Francisco enquanto esperava o fim da secretária eletrônica.
"Oi pai, é o Júnior. Desculpa não ter avisado, mas vou passar a semana de carnaval fora do estado…" Sentiu-se desconfortável, apertando os dedos contra o lençol ao seu redor que começava a incomodar, as janelas abertas trazendo a quentura do sol para dentro. "Tô indo pra BH, então não precisa se preocupar. Eu estou bem." Sentiu a mentira pesar na ponta da língua. "Ninguém trabalha nessa época do ano, volto até quarta de cinzas. Até." Paulo estava preocupado, ele sabia (demorou quatrocentos anos para que se importasse com sua localização).
E talvez com razão, pensou, olhando para os saquinhos transparentes e garrafas de lança-perfume jogados no tapete persa da sala. Demorou-se mais alguns momentos ali, sozinho, com a mente em branco e a voz, dessa vez, de Rita Lee recitando bem-me-quer no rádio stereo.
"Diga que me odeia, mas diga que não vive sem mim~" Com um gemido cansado, deixou o telefone em seu lugar de origem, voltando a procura de suas peças com o resto de dignidade que ainda tinha, seriamente tentado em alguns momentos pela bebida doce duvidosa que o carioca chamava de café.
E mesmo quando voltou para o quarto, a ex-capital nacional e ex-estado de Guanabara ainda se exibia em sua glória nua, livre de preocupações mundanas, como as de como São Paulo capital conseguiria sair de mansinho dali após um belo banho gelado.
"Preciso de uma toalha."
"Pegue no banheiro, não vou te negar uma ducha." Os olhos amendoados se ergueram do papel claro, num misto de curiosidade e diversão, lábios grossos formando as covinhas que dimensionavam o tamanho do sorriso mesmo quando apressou-se, desconcertado para o outro cômodo. "Só peço que tu não se apegue aos meus lençóis."
A água fria não lavou a sensação pesada que pairava em seus ombros. Vestido e pronto para gastar um pouco mais de seu salário anual, tomava escondido as aspirinas que encontrou na gaveta de talheres, Vitor quase que ignorando-o mutuamente enquanto procurava por algo na caixa cheia de fitas cassete no sofá.
"Paulistinha, me diga uma última coisa." Parou em seus passos no limiar da sala com a saída, não ousando virar-se. "Também acha que esta doença é uma marca de Caim?"
"Sua vida hedonista é bem conhecida desde os primeiros anais do império, Rio."
"Mas a tua veio à tona há menos de cinco." Rebateu, no tom de doce discórdia que o irritava profundamente. "Por que?"
Porque, desta vez, estou lutando por mim, estava na ponta de sua língua, fechando os punhos com força e olhando por cima do ombro para onde o mais novo se encontrava, músculos movimentando-se sob a pele bronzeada.
"Obrigado pela noite, Rio." Não daria o prazer de responder aos questionamentos do carioca (nunca deu), e sabia que ele sorria mesmo assim, naquele riso julgador.
E, enquanto esperava um táxi que o levasse ao Galeão, observou da janela a montagem de mais um dia de folia, o moralmente correto perdendo-se entre as fantasias e piadas ocultas de carnaval, transgredindo, travestindo e transpondo. Por um momento quase teve vontade de cancelar a viagem e voltar para a Lapa, de volta à diversão carnavalesca, mas conteve-se, imaginando o xingo que levaria do taxista mal-humorado.
"Esses bambis, corrompendo a alegria da nossa cidade e contaminando a gente de bem! Não se faz mais carnaval como antigamente, bicho! Tu não concorda?" Assentiu em silêncio, mal prestando atenção no papo enquanto via seu reflexo no retrovisor interno.
E, definitivamente, não havia nada de errado com ele. Seus dedos se fincaram em suas coxas enquanto engolia em seco, desviando os olhos do próprio reflexo. Júnior iria provar, por si e por outros como ele que sentir-se atraído por alguém do mesmo sexo não iria condená-lo a nada além de amargura, que seu amor não era um passatempo e seu corpo não era uma arma. E se levantassem a voz, ele berraria ainda mais (São Paulo capital não se curvava a ninguém além de seu Estado).
Poderia se arrepender de muitas das escolhas que fez – mas não iria mais se envergonhar por quem era de verdade, de esconder-se nas sombras, de usar a festa carnal como desculpa e calar-se quando apontavam o dedo em sua cara. O paulistano mudaria os rumos desse país se precisasse, começando pela vida dele.
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Diferente
RandomEle era diferente dos outros, São Paulo capital soube assim que cresceu o suficiente para juntar dois mais dois. Cinco histórias e cinco séculos de Paulo Júnior e sua sexualidade ao passar do tempo. 469 anos de SPcity | Estudo de personagem | +18...