Caminhando descalço pelo seu apartamento com as luzes apagadas, São Paulo capital abriu a porta da geladeira e a encarou por alguns segundos, decidindo-se qual seria a sua vítima às três da matina.
“Sim, eu entendi o que quis dizer… Não ‘meo, não se preocupa, eu ainda tava acordado mesmo.” Equilibrou o celular no ombro, dando um gole no gatorade antes de colocá-lo no lugar, espiando a entrada da cozinha. “Tô é preocupado contigo, me ligando a essa hora com voz de choro por causa de uma ‘transa.”
Sua vítima foi o pedaço de bolo de tapioca do supermercado, pegando toda a bandeja e a colocando no balcão, garfo já pronto para atacar.
"Foi uma noite com uma mulher, não uma condenação à guilhotina." Júnior riu baixinho, em provocação leve enquanto ouvia a voz preocupada no celular.
2022: a cidade de São Paulo entra no Guinness Book com a maior Parada LGBT do mundo. Havia, enfim, encontrado paz na satisfação do autoconhecimento (agora eram outros assuntos que tiravam seu sono durante a noite). Todos sabiam qual era sua posição e suas opiniões, e alegrava-o de ver o alívio ao encontrar em si o porto seguro de suas preocupações.
"Mas 'cê acha que alguém viu vocês?" Mastigou, olhando o bolo amarelado e "molhadinho" na ponta do garfo que o acompanhava na fofoca da noite. "E mesmo que visse, que problema tem? Você já é bem grandinha pra cuidar da sua vida entre quatro paredes. Vamos lá, repita isso comigo."
Esse país ainda está longe de um paraíso protetor e tolerante como se pregava, oh como ele sabia disso. Haviam doze milhões de pessoas sob sua pele, mas de vez em quando ele ainda sente falta daqueles rostos conhecidos que o agraciam em suas noitadas. E quem dera se somente sua cara feia pudesse afugentar os imbecis que ainda o subestimavam por sua sexualidade.
Ah, como sentia falta dos tempos de bandeirante, onde mandava e desmandava em qualquer alma sob seu poder da forma que bem entendesse, com direto safanões… Uma verdadeira lástima.
"Irmã, desde que o mundo é mundo as pessoas falam e acredite, te chamar de pecadora é a coisa mais gentil delas." Mesmo com o doce ainda na boca, o paulistano sentiu a amargura no fundo da língua. Soltando o talher, massageou os olhos, sobrancelhas se erguendo em resignação. "Eu sei, eu sei que dói. Mas você precisa entender que, em primeiro lugar, não há nada de errado contigo. Eu juro por tudo o que há nesta terra… Não há nada de errado com você."
Não havia nada de errado com ele – a frase que desejou, por muito tempo, que consolasse seus ouvidos e agora a repetia, continuamente e indiscriminadamente a todos que precisassem.
De forma inconsciente, trouxe a mão destra para seu rosto, lábios tocando a aliança dourada em seu anelar.
Júnior havia finalmente aberto seu coração para seu Estado, jogando em seu colo as verdades de sua existência com a voz amargurada e ébria, desafiando-o a lhe dar as costas. Estaria ao seu lado, após saber de mais uma de suas coincidências, a afeição pelo seu igual? Ou então o repreenderia, por se juntar a ele em atos tão vis?
Não conseguiria encará-lo mais se o rejeitasse.
Mas, Paulo, eloquente como sempre fora, apenas estendeu a mão e apertou seu ombro, não desviando o olhar. Não proferiu sequer uma palavra, mas os dedos apertando sua carne o trouxeram mais uma vez ao chão, o profundo das íris de café dizendo tudo o que precisava.
"Eu já sabia, menino."
"Não, jamais iria condená-lo por isso."
"Sempre vai contar com a minha proteção."
"Precisa ser mais cauteloso."
"Eu me preocupo com você."
"Você 'tá ficando mole, sabia?" Repetiu a única frase que seu pai lhe disse, um sorriso no rosto com a memória de décadas atrás. Atrás de si, passos de chinelos arrastados anunciavam uma segunda presença, sonolento e perguntando-lhe com a cabeça o que fazia de pé àquela hora.
"No fim das contas, só cabe a você descobrir quem é. Eu não tenho nenhum poder de ler mentes ainda, infelizmente." Apenas gesticulou, conversa pra outra hora. Com um sorriso fixo no rosto, nem precisou olhar quando viu Santos se mover lentamente em direção a geladeira, ouvindo o "tsc" irritado ao pegar sua garrafa de gatorade pela metade.
"Huh, guloso do caramba."
"E se as coisas ficarem muito tensas… Quero dizer, mesmo se não ficarem, e você precisar de um tempo, minha casa está aberta. E digo isso com sinceridade." São Paulo capital amansou a voz, no tom firme e acolhedor que usava em raras oportunidades, assumindo o papel de irmão mais velho de tantos seiscentos. "Ligue se precisar de mim, posso demorar pra atender mas vou fazer de tudo pra te ouvir. Talvez uns dias na capital esfriem sua cabeça."
Desligou, e, quando se virou, estava sozinho novamente. Com o celular na mão, ficou sentado no escuro por minutos, apenas o bip suave dos eletrodomésticos o acompanhando enquanto permanecia ali, olhando para o nada.
Ele ainda tinha muito a fazer. E como o cansava, somente poder proteger com promessas aqueles que o pediam por ajuda.
Júnior fez sua última viagem pela cozinha, jogando o garfo e a bandeja na pia antes de se guiar de volta para o próprio quarto, engatinhando pelo colchão até deitar-se ao lado do irmão, encarando as costas de João. O mais velho se virou, abrindo os braços e o aninhando em seu peito quando deitou a cabeça ali, os dedos dele em suas mechas.
"Onde que te desliga?" São Paulo riu, enroscando seus dedos nos pêlos do peitoral da cidade mais velha.
"Não vai perguntar quem era?"
"Amanhã." Em resposta, ergueu seu rosto e o encontrou no meio do caminho em um beijo casto, antes de trazer a mão direita de Santos para seus lábios, beijando a aliança gêmea em seu dedo. Seu namorado.
"Obrigado. Por me aceitar." Sussurrou contra as falanges quentes.
"Isso não paga meu gatorade, sabe?" Júnior riu, sentindo a barba por fazer de João em sua testa quando o beijou. "Mas acho que posso aceitar."
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Diferente
RandomEle era diferente dos outros, São Paulo capital soube assim que cresceu o suficiente para juntar dois mais dois. Cinco histórias e cinco séculos de Paulo Júnior e sua sexualidade ao passar do tempo. 469 anos de SPcity | Estudo de personagem | +18...