Como já era costume, perderam a hora. O rádio estava ligado, cantarolavam junto ao som de Temporal do Art Popular quando um carro parou na frente do bar. Não era o tipo de carro que tradicionalmente parava por ali. Clara não entendia de carros, mas sabia que aquele reluzente verde não era qualquer um. Rafael lhe informou que se tratava de um Mustang Mach, que só poderia estar perdido na vizinhança.
Desembarcaram dois homens, primeiro o que estava ao volante. De inegável beleza, parecia um modelo de passarela. Alto, esguio, olhos que brilhavam azuis e pareciam brilhar em uma esperteza de malandro.
Já o segundo homem não apresentava aquela beleza tradicional, era bonito sim, mas de certa forma... rústico. Um palmo mais alto que o parceiro, era corpulento, forte, notável pela manga da camiseta apertada no braço. Os olhos eram castanhos, o nariz parecia ter sido quebrado e nunca arrumado corretamente, era torto na ponte. A barba escondia marcas de espinha não tratadas no tempo certo, o sorriso era largo exibindo dentes branquíssimos e nunca deixava seu rosto, como se cordas invisíveis puxassem as pontas da boca para cima relaxando apenas quando ele passava a língua pelos lábios, ação que se repetia diversas vezes.
Ela conhecia ele, só não sabia apontar de onde.
Quem quebrou o silêncio foi o motorista, dirigindo-se para Dona Dilma.
— Com licença, a senhora tem alguma cerveja importada?
As meninas se entreolharam e tentaram controlar o riso. Tentaram. Quando Maria Cecília explodiu em um riso genuíno todas a acompanharam fazendo com que a atenção caísse na mesa em que estavam. Os dois rapazes olharam de imediato, os olhos azuis se estreitaram e os castanhos abriram acompanhando em um riso fraco para o desgosto do amigo, talvez ele entendesse que a pergunta havia sido tenebrosa.
— Algum problema? — O motorista perguntou, arqueando a sobrancelha e se aproximando da mesa. — Contei uma piada? — Era fácil perceber que estava bêbado, com a proximidade ficava ainda mais nítido, os olhos estreitos estavam pesados, um rubor tomava as bochechas e os movimentos graciosos eram pura ilusão.
— Vocês querem morrer? — Clara perguntou fazendo todos os olhares se voltarem para ela, havia soado muito como uma ameaça, mas ela só percebeu depois de alguns segundos. — Não, não foi o que eu quis dizer... Não vou pegar e matar vocês com as minhas mãos... Ou qualquer objeto. Eu quis dizer... — Apontou para o carro. — Beber e dirigir. Ele que está dirigindo, não?
A estudante falava diretamente com o mais alto, como se o amigo fosse uma criança na conversa, um acessório. Ele, aquele sorriso permanente, fixou os olhos castanhos nos ainda mais escuros da garota. A mão larga puxou uma cadeira de plástico que sobrava de uma mesa vazia e empurrou o ombro do amigo para que ele sentasse.
— Ele vai tomar uma água. — Então o deixou ali enquanto entrava no bar e ia até o balcão. Não demorou a voltar com uma garrafa de água e um pacote de fandangos jogando o último no colo do amigo. — Meu nome é Wellington, esse é o Lucas. — Disse apontando o polegar para o amigo antes de puxar uma cadeira para si e sentar. — Você são...?
— Meu nome é Elen, essa é Macê e essa é a Clara. Clara Letícia Oliveira, caso queira procurar no instagram.
Clara limitou-se a lançar um olhar feio para a amiga que respondeu com um dar de ombros. Seu olhar encontrou brevemente o de Wellington que piscava os castanhos na direção dela, era impressionante o volume dos cílios. Mas a garota não demorou a desviar, encontrando um fascínio repentino pelo copo pousado na mesa.
— Mas vamos ser sinceros aqui, vocês estão perdidos, né? — Elen continuou falando sem receio algum. — Um carrão desses, essas roupas de grife que provavelmente são verdadeiras... E a carinha dele de quem nunca andou por essa vizinhança.
— Bonitinha e arrogante, deveria ter mais respeito com a gente. Tem noção que nós... — Lucas tentou continuar antes de ter sua boca tapada pelo amigo que pegou a chave do carro com a livre.
— Meu amigo aqui não cansa de falar, mas pode dirigir. Se a gente ficar por aqui acho que só vai trazer problema e eu não quero problema com vocês... Elen, Macê e Clara Letícia Oliveira. — O ritmo lento no último nome demonstrava tamanha confiança na voz de Wellington que Clara ficou desconcertada.
— Claro que não. — Concordou baixo, sentindo não saber falar nada interessante.
— Até diria que nos vemos por aí... — Lucas, não solicitado, voltou para a conversa. — Mas como todos nós sabemos, não somos da mesma vizinhança. — Levantou e puxou o amigo pela roupa. — Vam'bora.
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meu coração bate em azul e preto
RomanceA cidade de Lago Claro respira futebol. São Roque e Cidreira dividem uma cidade enquanto nossa protagonista Clara Letícia tenta encontrar quem é e qual seu caminho. Só não esperava que no meio do seu caminho tivesse uma pedra, um rival, um amor.