Gael

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Na manhã seguinte pulei o muro de casa para a linha com uma empolgação nova e relutante.

Será que eu ia dar de cara com aquelas pernas de novo?

A chance não era muita, visto que eu andava por aquele mesmo caminho há anos, sempre  nos mesmos horários e nunca havia visto aquele cara antes. Nem ele e nem os amigos dele.

Mas o friozinho na barriga só me deixou quando passei novamente pela plataforma e vi que estava realmente vazia.

Tentei reprimir a frustração idiota que cismou em aparecer. Provavelmente ontem eles tinham matado aula ou algo assim.

E mesmo que ele estivessem ali, e daí? Pra que ficar empolgadinho pra ver um cara desconhecido de longe fumando um?

Mas era tentar tirar esse cara da cabeça que a voz malandra vinha:

"Fala, playboy"

E houve mais um "Fala, playboy". Na volta da aula lá estava o grupinho, dessa vez o cara do baseado e mais os dois do uniforme .

O mesmo baseado, o mesmo short curto, mas dessa vez com uma regata vermelha.

Me aprumei um pouco e fingi indiferença, quando cheguei na reta deles dei aquela olhadinha e recebi o tão esperado cumprimento. Sorri meio sem graça em resposta e segui meu rumo.

E assim uma nova rotina foi criada. Meu dia passou a ser meio que dividido em ficar na expectativa de cumprimentar o rapaz que me olhava nos olhos e em descarregar o tesão reprimido depois em casa.

E ele sempre estava lá. As vezes com os 3 amigos, as vezes com 2, as vezes num grupo maior ainda. Os coadjuvantes eram rotativos mas o protagonista sempre lá. Com aquele baseado, aquelas pernas e aquela voz.

E sempre me cumprimentava olhando nos meu olhos.

A noite ele ganhava outros contornos. Nos meus delírios ele se chamava David. David sempre me esperava na plataforma pra me acompanhar até minha casa, ele dispensava seus amigos me dava as mãos e me levava embora. David era meu namorado e morávamos sozinhos. A gente chegava em casa eu fazia comida pra ele, depois ele me comia. As vezes ele me comia antes de eu fazer comida pra ele. As vezes ele me comia enquanto eu fazia comida pra ele.

Sempre me olhando nos olhos...

Era delírio mas funcionava pra eu gozar a noite.

Eu só fui perceber a importância dele na minha vida numa quinta feira quando eu voltei do colégio e ele não estava lá.

Parei de frente para a plataforma completamente vazia com um espanto mudo. Me sentindo...

Eu estava sentindo a sensação mais absurda possível : que eu tinha levado um bolo.

Como isso podia ser possível?

*

Aquela noite e o dia seguinte foi horrível, não tinha ânimo pra nada. Até andar na linha pra ir pra aula, que sempre me deixava feliz, foi massante. O tempo estava nublado igual meu humor. Eu sabia que naquele horário era muito pouco provável ver o "David" mas quando avistei de longe a plataforma vazia só fiquei pior.

  Assisti as aulas no automático e na volta pra casa, quando desci as escadas para a linha e senti um comichão de expectativa, me bateu uma bad sem igual. Que bosta de vida eu devia ter pra ficar ansioso em receber um : "Fala, playboy"

O cumprimento nem era o mais importante, mas sim o olho no olho.

Ele me via. A questão era essa.

  Ultimamente eu não me sentia visto por ninguém. Não me entendam mal, eu não era invisível. Mas ao mesmo tempo era. Ia pra aula, trocava algumas palavras com algumas pessoas que não pareciam se importar comigo, ria de piadas que eu não entendia e ouvia sobre assuntos que não me interessavam.

Em casa a mesma coisa, meu pai mal humorado e minha mãe cansada. Se eles mal se falavam imagina como era comigo.

Na internet eu me sentia um pouco mais importante, mas lá no fundo eu sei quão raso e boba é essa importância. Tanto que eu conversava com muita gente e não era eu mesmo com ninguém.

Eu nem sabia quem era eu realmente.

Eu era o Gael quieto e tímido que eu demonstrava pra todos pessoalmente?

Eu era o Gael descolado e corajoso que eu demonstrava pra todos virtualmente?

Ou eu era o Gael que queria dar pra todo mundo e ser cadelinha de malandro igual os vídeos que eu assistia?

Ou eu era um pouquinho dos três?

Ou eu não era nenhum dos três?

Eu era algo? Eu valia algo?

E nesse turbilhão de indiferença eu encontro um cara que olha nos meus olhos e me dá "Oi" toda vez que vê.

Um pingo gelado na testa me tira do meu devaneio depressivo. Olho pra cima e só vejo nuvens carregadas. Ótimo! Vamos pegar uma pneumonia para fechar com chave de ouro.

Começo a meio correr, meio pular as tábuas dos trilhos. Ainda estou no meio do caminho pra casa e  claro que esqueci meu guarda chuva.

Os pingos começam a ficar mais frequentes e ouço um trovão não longe. Junto com o trovão ouço barulho de gente ergo os olhos a tempo de ver dois rapazes  passando por mim na direção contrária também na pressa de fugir da chuva.

Meu coração salta rapidamente e paro por dois segundos, olho pra trás mas são os dois caras do outro colégio apenas. Ouço mais um trovão, esse bem mais perto e volto a correr.

Os pingos espaçados começam a virar uma garoa forte. Olho pra frente e vejo a plataforma, mais uma vez vazia. Com certeza não vai dar tempo para chegar em casa antes do toró e eu ainda não me molhei tanto...

Toma decisão e corro pra plataforma, ela é coberta e larga. Quando piso nela o mundo acaba em chuva. Pelo jeito vou passar algumas horas ali se eu quiser chegar cedo em casa.

Cruzo os braços, largo a mochila e olho pra linha de trem sendo castigada pela chuva. A tarde subitamente escureceu. Parece um reflexo da minha vida.

(Talvez seja melhor mesmo se eu for pra casa e pegar uma pneumonia)

Alguém ia sentir minha falta?

Sinto uma água correndo pelo meu rosto. Mas essa é quente e sai dos meus olhos.

Estou quase apanhando minha mochila e enfrentando a tempestade e a possível pneumonia quando reparo em algo se mexendo no meu campo de visão.

Escorado em uma outra pilastra da plataforma, com os mesmos shorts pretos e usando uma outra camisa de time, ele me olha meio curioso.

- Tá tudo certo aí contigo, playboy?

***



Andando na linha (gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora