Asfodelina

317 41 18
                                    

Ele mora no primeiro andar de um prédio a duas quadras de distância. O lugar é bom de morar, apesar da aparência antiga.

Ao entrar, dá bom dia ao porteiro, que já o conhece de longe pelo som dos passos, pois cães infernais são sempre requisitados para trabalhos que envolvem atenção. Não nascem como egrégoras, mas muitos crescem em lugares difíceis e levam vidas difíceis pelos Anéis, já que o Inferno sempre separou os cães, diabretes, íncubos e poltergeists como os mais “baixos”.

Martín já vai direto tomar banho, pois andar dentro de casa com os cascos sujos da rua e cabelo todo revirado e coisas secas ao vento é um crime sem perdão, na própria opinião. Deixa os papeizinhos que não ocupam nem a mão inteira sobre a pia, tira a tanga e entra no box, deixando o chuveiro o molhar com a água na temperatura que se cozinha uma sopa. Sorri ao começar a se lavar de verdade e  sentir o cheiro do sabonete: ele tem um costume de lembrar das coisas pelos cheiros, como se cada aroma fosse uma fotografia, e o sabonete em barra do mundo humano o faz pensar na liberdade do céu aberto e do sol que fazia quando o comprou. Os poltergeists roubam dinheiro humano e vendem para os habitantes do Inferno em lojinhas ilegais, e foi um desses ladrões que o vendeu um celular com aplicativos mundanos e um roteador de wifi compatível com o novo aparelho, pois computadores e celulares do Inferno não funcionam com os programas do outro mundo.

É com esse celular que irá salvar o número de Luciano.

Ao sair do banho, se seca e liga o roteador, pega o celular e finalmente lê o número com atenção, sentando no sofá e ignorando o ronco em seu estômago.

Abre o aplicativo verde, avaliando se a própria foto de perfil está apresentável, considerando que tem poucas fotos na forma humana. Até que está bem bonito, com a pele branca corada pelo sol e um óculos preto sobre o nariz com o “ossinho” proeminente, cabelo bagunçado e um colar preto, aparentando estar distraído. Catalina é uma excelente fotógrafa. Volta ao início e clica em “adicionar contato”. Digita o número escrito, salva como Luciano antes de enviar uma mensagem curta.

Oi, aqui é o Martín, do bar.

Os dois traços cinzentos indicam que a mensagem foi enviada. Calculando o tempo em que está em casa com o tempo que saiu do último quarto, deve ser de manhã bem cedo lá, onde todos estão ocupados demais para responderem desconhecidos pela internet. Mesmo assim, Martín mantém o volume alto para caso receba uma resposta enquanto prepara o jantar.

Na cozinha, abre a geladeira e caça algo para requentar, encontrando um pote com sobras do peixe que foi comido no dia anterior, um desses que se encontra no Estige. Se adicionar um temperinho e comer com massa de asfódelo salgada, fica uma delícia.

Os bulbos e raízes dos asfódelos ficam juntos, secando. Pega para amassar com o fermento de fungo negro e água salgada numa cumbuca de ferro; depois de formada, a massa deve ser assada em uma forma untada.

Enquanto a massa assa, começa a requentar o peixe, aproveitando o cheiro que o lembra da cozinha de Miguel, um demônio feral, jaguar, que realmente sabe cozinhar bem, tendo uma habilidade absurda com os peixes e carnes.

Em todas as vezes que Martín foi convidado para algo lá, geralmente com o convite partindo de Manuel, que é harpia, saiu com o estômago feliz da vida. Miguel e Manu moram no Anel da Inveja, onde a grama é verde brilhante e as casas são realmente belas, é um lugar quase todo povoado por ferais de grandes clãs e herdeiros de principados, Martín os conheceu ao ir para o Anel da Ira, onde inventou de ir aos penhascos encarpados onde ficam as colônias de harpias, se perdeu e só foi encontrado pela audição invejável de Miguel, que estava saindo com Manu pelas trilhas de lá. Se tornaram bons amigos desde então.

Senta na mesa, observando o fogo azulado dançar, tão inquieto quanto ele mesmo.

O silêncio é interrompido pelo som das notificações de seu celular humano.

“Mas já?”

Com um movimento rápido, pega o celular. Na barra, logo abaixo do horário, há o símbolo do Whatsapp, em que o íncubo clica duas vezes.

Oi, aqui é o Luciano
Que bom ter lembrado de me chamar

Martín desliga o fogo sob a panela e coloca a tampa sobre ela antes de responder. Não quer parecer desesperado, mas não pode demonstrar desinteresse.

Teria como eu esquecer?

A mensagem de resposta foi antecedida por uma figurinha de cachorro em má resolução.

Sei que sou inesquecível
Vai estar livre amanhã? Não é todo dia que eu tenho folga na sexta.

Martín resolve usar sua marca registrada para falar com aquele homem.

Para você, eu estou livre
Onde quer que eu esteja?

  A resposta demorou um pouco, mas veio

No mesmo bar, vai umas oito da noite, de lá a gente sai pra um lugar dahora que eu conheço

Que merda seria um lugar "dahora"?

Então, combinado
Até amanhã
Lu
 
Ele recebe outra figurinha de cachorro em má resolução.

A gente se vê, Tincho
Eu realmente não sei como se colocaria um apelido pro seu nome
Tchauuu

Com um sorriso no rosto, se despede e observa o online sumir por puro costume antes de ir fuçar a foto do perfil alheia. Ele está sorrindo, realmente muito feliz na foto tirada de forma bastante espontânea, olhando algo que Martín não consegue identificar, mas há uma árvore atrás dele. E, se puxar um pouco, nota-se que as tatuagens no pescoço realmente são silhuetas de pássaros.

Martín ainda vai quebrar muitas regras com esse homem, mas só depois de falsificar um cartão de coordenadas e dormir todas as horas a que tem direito.

..........❦...........

Nota da autora: Esse é o capítulo mais curto, mesmo, mas o próximo tá ficando comprido.
Espero que tenham gostado <3

IncumbidoOnde histórias criam vida. Descubra agora