São as coisas boas em nossa vida

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A mão de Luciano desliza, suavemente, pelo corpo cansado de Martín.

O íncubo nem abre os olhos; apenas se entrega à sensação daquela carícia em sua pele, largando o corpo no pequeno sofá. A mão acompanha o movimento enquanto o dono sorri.

— Desse jeito, você parece um gato — Luciano também relaxa contra o encosto do sofá, sem parar com a mão —  Agora, eu tenho dois gatos.

Martín abre os olhos, encarando-o com uma falsa cara de bravo, mas só até ceder e começar a rir. Ele coloca a sua mão junto com a de Luciano, entrelaçando as duas e apertando-as.

— Lu… Você realmente quer isso? Saber o que eu já fiz, da onde eu vim… Isso não te perturba?

— Não posso dizer que não acho, no mínimo, curioso — Diz, apertando ainda mais a mão — Mas eu sempre fui um sujeito decidido. Aliás, você consegue passar quanto tempo fora do Inferno? 

— Não somos como peixes — Explica — Temos a mesma expectativa de vida de vocês, e posso passar a vida toda aqui em cima. Depois de um tempo, perco os feromônios, o poder de lábia e a minha necessidade de, bom, ter que sugar a energia vital dos outros.

— E o que acontece se você perder essas coisas?

— Me torno parecido com um homem, mas ainda vou entender qualquer língua e conseguir me transformar. Eu, sinceramente, não me importo, pois eu continuo sendo eu mesmo, desde que eu tenha uma razão para permanecer aqui, considerando que tudo o que tenho está lá embaixo; e não, não vou te mostrar, já que os pulmões humanos queimam e seus corações explodem lá, nem pense em ir.

Luciano suspira, sabe que está indo para um terreno desconhecido, está sugerindo coisas demais para alguém que o conhece há um mês. Mas ele é um pouquinho exagerado, fazer o quê?

— Quer ficar aqui comigo?

A pergunta, saída de repente, surpreende ambos.

—  Sabe… A gente não gasta muita água e luz, e eu tenho um dinheirinho economizado, dá pra arranjar uns documentos e te matricula numa aula, só pelo diploma — Tenta explicar melhor o seu plano mirabolante — Sempre tem alguém querendo funcionários por aí. Tu se estabiliza aqui comigo e a gente vê como fica.

— "A gente vê como fica". Você é um péssimo estrategista, só fala bonito. Mas, eu não quero ser um problema a mais, ou…

“Droga! Ele tá me esperando e eu quero fugir!”

— Cara, nunca te deram um pingo de consideração na vida? Um carinho?

Quando o outro o olha com olhos úmidos de verdade, Luciano, arrependido, percebe que não, ele não recebeu carinho de algum amante antes. E Martín foi mostrar: respirou fundo, se inclinou, deitando a cabeça na perna de Luciano.

— Sente o meu chifre esquerdo, tenta achar uma fenda nele, parece um lascado.

O homem obedece, passando os dedos pela protuberância áspera, se demorando na suposta parte lascada. Ela não é grande, mas machuca sua pele. Demora seu toque ali, questionando se Martín consegue sentir.

— Foi a única vez que eu usei os chifres para alguma coisa, me defendendo de um homem. Não estou te culpando, mas… se é isso que você quer, se realmente me quer contigo, saiba que minhas experiências aqui em cima não foram muito boas.

Luciano, quase se colocando num cantinho, prefere não responder, mas o manda levantar do sofá, querendo confortá-lo, proteger seu Tincho do mundo debaixo e do mundo de cima. Pede para que ele se levante e siga-o até o quarto.

A cama está bagunçada, mas a coberta fina mostra que ele havia tentado dormir. Um copo d'água repousa na mesinha, próximo ao celular com a tela rachada, e não há nenhum abajur sobre o móvel. Martín usou o disfarce humano ao entrar no cômodo, e sua tanga se alterou para uma bermuda anormalmente confortável, própria para dormir. Ah, seu poder não falha.

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