O homem mal atravessara a porta e viu a pequena figura correndo em sua direção. "Vovô, vovô!" ela dizia com felicidade. E o velho se agachou para receber o melhor abraço do mundo.
Estava coberto de poeira e suor, mas a pureza no gesto da neta era imune a aquilo. "Você não deveria estar dormindo?" ele perguntou. "Estava esperando você e o Chico," a garota respondeu. "Chegaram tarde hoje."
O homem se levantou e massageou a parte de trás do pescoço. O dia de trabalho fora intenso e ele só se dera conta de que estava tarde quando as vistas já não enxergavam dez palmos à frente. A recém-instalada iluminação elétrica ajudava, mas não era forte suficiente para brigar com a escuridão da noite.
"Chico quis passar pelo Teatro Municipal," ele disse, "e demoramos mais no caminho de volta." A garota sorriu e falou: "Chico adora o teatro, assim como mamãe." A frase deixou o homem sem palavras. Mesmo depois de anos, a menção à filha ainda machucava. "Vem," chamou a garota, "a vovó fez sopa para a janta." Pegou a mão do avô e foram para a cozinha.
O homem cumprimentou a esposa e lavou as mãos na pia. Trocaram algumas palavras e se sentaram a mesa para comer. Durante a refeição, a pequena Maria contou sobre seu dia. Sobre o livro que estava lendo, sobre as tarefas da escola e sobre a briga do gato do vizinho com um cachorro de rua. Contou também que dr. Albieri passara lá naquela tarde, e que dissera que a ela estava bem.
Maria sofria de uma grave condição que não a permitia fazer grandes esforços. Era uma garota pequena, magra, de pele pálida e cabelos finos. Frágil. Tomava remédios e vez ou outra era levada às pressas ao hospital. Mas naquela noite se sentia bem. "Talvez eu possa montar Chico amanhã," ela disse com os olhos radiantes enquanto dava as últimas colheradas na sopa. "Ele trabalhou muito hoje, acho que vai gostar de andar comigo," completou.
O velho respirou fundo antes de responder. A vida sempre fora dura com ele. Bateu, apanhou e aprendeu desde cedo a se levantar depois de ser derrubado. Ao longo dos anos criou uma casca ao redor de si para lidar com tudo o fosse jogado contra ele. Ou melhor, quase tudo. Porque nada o havia preparado para aquilo: olhar nos olhos brilhantes do ser humano que mais amava na vida e saber que teria que destruir seus sonhos. Maria não poderia montar Chico. Nem amanhã, nem nunca. Não havia casca capaz de protegê-lo daquela dor. "Se você acordar bem, podemos tentar," mentiu.
A esposa, percebendo tudo, retirou os pratos e mandou a neta ir dormir. "Boa noite, vovô. Boa noite, vovó." Maria se despediu e foi para o quarto e um longo silêncio preencheu a cozinha até que Isabel se sentasse à frente do marido e iniciasse novamente a conversa.
"O preço dos remédios aumentou novamente," disse de uma vez. Mas a informação já não causava surpresa ao velho — os preços sempre aumentavam. O que chamou sua atenção foi o sorriso da esposa acompanhado da tristeza no olhar. Estava casado a tempo suficiente para saber que vinha coisa por aí. "Fale logo, mulher," pediu sem paciência. E Isabel falou sobre a conversa que tivera com dr. Albieri.
Quando Albieri estudou em Coimbra, anos atrás, conheceu um médico chamado Afonso. Eles ficaram muito próximos durante o período. E quando Albieri voltou ao Brasil, passaram a trocar cartas — hábito que mantinham até aqueles dias. Afonso acabou por se especializar em cardiologia e se tornou um respeitado cirurgião. Por este motivo, ele viria ao Brasil dali algumas semanas palestrar aos médicos da Santa Casa.
Acontece que o caso de Maria já fora discutido por eles nas cartas. A doença era objeto de estudo da pós-graduação de Afonso. Este, havia desenvolvido uma técnica cirúrgica que prometia a cura definitiva. Mas por ser uma condição rara, havia poucas oportunidades de testá-la. Assim, o médico português abriu espaço em sua agenda e se ofereceu para operar Maria. Não cobraria nada, desde que os responsáveis permitissem-no usar os dados em sua tese. Mas ainda assim, teriam que arcar com os custos hospitalares.
Quando Isabel terminou de falar, o marido entendeu o motivo da tristeza no olhar. Os custos hospitalares de uma cirurgia seriam altíssimos e o casal mal tinha dinheiro para comer e comprar os remédios da neta. "E quanto vai custar?" perguntou.
A mulher hesitou antes de revelar o valor. Era equivalente a dois anos de trabalho. Ao ouvir a cifra, o homem se levantou e caminhou até a janela. Observou o horizonte e pousou os olhos em Chico, bebendo água à luz da lua. Coçou o queixo e repetiu para si o valor: "200 Réis." Sim, o tempo era algoz.
800 Palavras.