Epílogo

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Em uma tarde de verão quente, passeando em meio as árvores da praça central era possível quase sentir o gosto das folhas das figueiras. O canto dos pássaros eram o embalo de toda a estação quente do ano e as crianças correndo ao redor dos brinquedos faziam uma tarde de domingo ter muito mais paz do que qualquer outra.

Gostava tanto de crescer em Não-Me-Toque que pensava pouco em como seria o futuro em outro lugar. Era comum pra qualquer pessoa, de qualquer idade, se enxergar por ali até morrer. A cidade tinha menos de 18 mil habitantes, mas tinha tudo o que precisávamos e até algumas lojas grandes em algum momento abriam uma filial por ali. Ali era conhecida como a capital nacional da Agricultura de Precisão. O que isso queria dizer? Aos 8 anos de idade eu não fazia ideia, mas sabia que era alguma coisa a ver com colheita de alimentos.

Como toda boa cidadezinha do interior, todos os nãometoquenses se conheciam e a fofoca era uma coisa absolutamente cotidiana. Não era necessário querer saber algo de algum vizinho, você iria saber de qualquer maneira pois o assunto chegaria até sua casa de um jeito ou de outro.

Sei que o nome o lugar é bem engraçado e os moradores de outras cidades tiram sarro daqui por isso, mas houve até plebiscito pela década de 1970, bem antes de eu nascer, para que o município voltasse a se chamar Não-Me-Toque, pois teve seu nome trocado pra Campo Real por cerca de 5 anos. Somos todos muito orgulhosos pelo nome da cidade e suas duas teorias de origem: Uma árvore chamada Não-me-Toque, ou um possível dito popular de portugueses que adquiriram terras por aqui, que costumavam dizer "Não me toques daqui nunca", reivindicando que jamais sairiam de suas terras na cidade.

Por aqui, como na maioria das cidades interioranas do Rio Grande do Sul, praticamente todos os nativos eram descendentes de portugueses, alemães e holandeses. Era muito bonito observar a arquitetura das casas pela cidade e era fácil perceber qual casa era feita por família portuguesa, família holandesa ou alemã pois todas contrastavam muito.

Não havia uma família por aqui que não fosse muito orgulhosa de sua origem. Algumas adoravam mencionar umas 10 gerações para trás e mostrar fotos de seus ancestrais. Os sobrenomes eram tipicamente herdados do país de onde vinha cada família e era bem comum que novas famílias se formassem por ali mesmo, mantendo suas raízes pela cidade.

Assim também, era comum que muitos jovens iniciassem suas jornadas de trabalho em uma das grandes empresas de máquinas agrícolas que existiam por ali. Boa parte dos moradores de Não-me-Toque e das cidades vizinhas eram empregados nas fábricas e construíam suas carreiras por ali.

Meus pais se conheceram na escola durante o ensino médio e se apaixonaram. Ele dizia que fora amor à primeira vista. Minha irmã mais velha, Ágatha, surgiu através desse amor avassalador quando os dois tinham apenas 18 anos. Foi um choque para todos, dizia minha mãe. Meu pai começou a trabalhar na fábrica da maior empresa da cidade logo que minha mãe engravidou, ela trabalhava como garçonete em um dos bares da cidade. Três anos depois, eu vim ao mundo, o que dificultou um pouco mais a vida dos meus pais. Se já era complicado trabalhar e cuidar de uma criança pequena, quando souberam que eu estava a caminho, foi necessário que minha mãe largasse o emprego para cuidar de nós duas, mas as coisas seguiram funcionando bem por mais um tempo.

Mais dois anos se passaram e assim chegava o começo de um fim. Quando minha mãe soube da gravidez de meu irmãozinho Arthur, meu pai já estava com turnos extras na fábrica e os dois viviam brigando. Nessa época, minha mãe já tomava anticoncepcionais pois não desejava mais uma gravidez, mas ninguém havia lhe contado que antibióticos cortavam o efeito da pílula, e foi então, que após uma semana tratando-se de antibióticos após uma forte amigdalite, a sementinha que daria vida ao meu irmão foi plantada.

Durante a gestação de Arthur, parece que minha mãe já sentia que as coisas entre ela e meu pai poderiam acabar mal e sabia que precisava contar com ela mesma. Nos 8 meses seguintes de gravidez, ela empenhou-se em formar-se técnica de enfermagem. Seu maior sonho sempre foi trabalhar no hospital da cidade, mas com a chegada de minha irmã, isso acabou ficando em segundo plano.

Poucos dias antes do aniversário de um ano do Arthur, meu pai arrumou suas malas durante a noite enquanto todos dormiam, e foi embora. Simples assim. Sem brigas, sem incômodos, sem nos dar um último abraço, sem deixar uma carta, sem nada. Nós nunca mais o vimos. 

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