AMPULHETA I - O Pesadelo do Pintor

12 0 0
                                    

Tudo começa com uma AMPULHETA.
Uma mão pálida e arenosa a colocou delicadamente sobre uma grande mesa de pedra. Ele a colocou, digo... meu irmão a colocou como se a tivesse colocado centenas de vezes antes.
Toda a areia, tão pálida quanto o homem que a segurava já havia chegado ao fim, seu ciclo já havia se cumprido e um novo precisava começar. Era sempre silencioso em momentos como este, com um toque de morte e solidão. O escuro cobria tudo e de fato não havia hora melhor para um ato de tal natureza.
A noite.
Onde Sonho reina. E eu o acompanho.
Ele toca novamente na velha, porém bela e bem entalhada ampulheta. Os sussurros, os lamentos, as lágrimas e os arrependimentos, juntos dos alívios e bocejos dos bem aventurados! Tudo de uma vez só! Vindo como uma ventania ao toque do primeiro dedo!
Então...
Ele a vira novamente. A ampulheta pode recomeçar.
Eis o grande Livro dos Sonhos Sem Fim! Ele se abre como se pesasse tanto quanto o peso de toda a criação!
Veja... É hora...
O primeiro grão se prepara para tocar o fundo do vidro. O velho sonho segura levemente sua singela pena de pégasus, seu manto suspirou com pesar, seus cabelos brancos se misturou ao que pode-se chamar de ar no ambiente e a espiral no lado esquerdo de seu rosto ganhou vida pois a noite havia começado. O então primeiro sonho da noite enfim se preparava para ser sonhado. Ouça! A primeira queda livre. Ou seria um pensamento? Um desejo? Caindo até o abismo da consciência, rumo aos devaneios de seu ser, para os braços do homem pálido, para dentro de seu manto branco sonhar. Silêncio! Deixe-o contar...

É 1781. Em uma noite fria e cheia de amargura, um melancólico e desiludido pintor adormece em sua cama, com seu rosto a sumir no velho travesseiro, como se tragado por areia movediça ou um pântano lamacento. Ele chega até mim, não em pessoa, mas em consciência. Ele pede novamente, não por vontade própria, mas em seus desejos mais reprimidos. Ele pede por um sonho de sua vontade. Ele pede pelo controle e suplica que seja para sempre. Mas sonhos não duram para sempre.
Seu coração partido não há de se reconstruir e nem é de seu querer que a tão graciosa cura lhe tire dos dias em que o pincel em sua mão parece pesar tanto quanto sua consciência e seu coração. Dias de lembranças tortuosas, mas que lhe traz a paleta de cores necessária para sua arte.
Ele pede, como pediu dezenas de vezes todas as noites que se foram. Outrora uma bela noite de luar.
Uma romântica noite.
Uma bela manhã ao ar livre deitados na grama.
Um fim de tarde no lago.
Não mais.
Ele está lá, parado, contemplando o abismo. Seu coração estava mais destroçado do que da última vez, como se pudesse ser ainda mais pisoteado. Como podem sofrer tanto? Suas vidas são tão curtas, tão pouco tempo para tanto lamento. Mas ele sabe disso, por isso pinta. A dama a qual ele um dia entregou seu coração e não mais era de seu querer estar em seus braços havia enfim lhe esquecido. Em seu lugar, um outro havia prendido seu cavalo. A conquistado como outrora ele o fez.
E então ele PISA.
Ele pisa em seu próprio coração com sangue sendo espalhado para todas as partes pintando esta grande escuridão, com lágrimas a desvanecer esta forma corpórea que existe unicamente em sua mente. Pouco a pouco enquanto as lágrimas caiam de seu rosto, eis um grito de lamento, sem som, sem cor. Sangue e lágrimas, pintando todo o salão escuro, dissipando o jovem pintor, até que então a lágrima dá forma ao sonho.
Um quarto escuro, cortinas carmessim e uma cama a se fazer. Olhamos atentamente enquanto a bancada de carvalho se forma e a cama se completa inteiramente. Em cima da cama uma bela dama de longos cabelos cacheados, despojada em um longo vestido branco. Com seus olhos fechados e seu belo rosto como se fosse esculpida por anjos. Tudo poderia se tratar de uma miragem, uma ilusão criada por mim. Uma simples personificação do lar dos sonhos na mente da amada do jovem pintor. Um homem que apenas gostaria de rever quem ele ainda amava e desejava, plena e cintilante em um momento de serenidade. Poderia, se isso fosse um sonho.
Não.

Isto é um pesadelo.
Sangue pinga na barriga da mulher. Um pingo, dois pingos, três pingos. Quando deveriam escorrer até seus seios e pescoço, os pingos enfim se juntam, como se tivessem vida. Uma pequena forma, pulsando, gritando, suspirando, ofegante. Daquela gosma que não mais poderia ser chamada de néctar da vida, surge algo. Uma coisa que emite sons pavorosos enquanto ganha pernas, braços, um tronco e por fim uma cabeça. Um corpo pequeno e vazio, como fumaça, pouco a pouco ganhando um aspecto parecido com uma pele. Uma pele gordurosa. Pelos surgem dela, unhas pontiagudas e podres saem de seus dedos, orelhas e rabo como a de um animal que crescem repentinamente. Ele treme e seu corpo se fecha. Ele respira fundo e enfim se acomoda no umbigo da dama. Ela sonha com um lindo jardim de Lisianthus.
Não aqui. Aqui e agora, ela está à mercê. Pobre mulher. Se ela soubesse...
Ele sorri por um instante, bem breve, um mísero sorriso. Sua sombra lembra a do diabo. Meu jovem irmão, que se deleita com tal cena ansiando pelo fim do terror iminente, se personifica em um cavalo de sombras, relinchando de prazer com seus dentes pretos e seus olhos brancos, imaginando ele que eu não o notei invadindo o meu reino. Que olhar depravado! Não, pobre tolo, eu sou o sonhar. Eu sou tudo aqui, contudo, preciso me ater aos detalhes que importam. Enquanto ele quase explode de prazer ao presenciar uma cena tão vil e terrível, a jovem dama dá seus primeiros suspiros e suas primeiras piscadelas.
Ele olha para você. E para mim.
Quando seu olhar nos alcança. Ela acorda. Presenciamos seus olhos vermelhos sem vida. Ela quer gritar, mas tão pouco consegue. Ela quer acordar, mas como poderia? Ela se pergunta se sonha ou se vive. Ele nos encara. Ela olha diretamente para nós com seus olhos azuis d'água. Ele o encara, diretamente para você. Com seus olhos de sangue. Olhos de um homem - não, não mais um homem, algo pior que um homem. Um demônio. Um ser arrebatado pelos sentimentos mais sombrios de alguém que se afundou no inferno do lamento. Alguém que não conseguiu superar. Não conseguiu seguir em frente. Alguém que se perdeu dentro de si. Esquecido por todos e por si mesmo.
Agora ele atormenta quem um dia amou.
Agora ele invade o sonho daquela que um dia agraciou.
Agora ele deseja um sonho que não pode ter.
Agora ele deseja sonhar com o sonho de outrem.
Agora ele transforma as noites de sua antiga amada em pesadelos nos quais ela não pode sair até que ele mesmo se retire.
O medo lhe consome.
Ela tenta se mexer. Uma tentativa em vão.
Agora outro mora em seu coração.
Agora ela tenta gritar novamente.
Por qual motivo? Por qual motivo ela o abandonou?
Importa? Que culpa tem?
Agora ele entende. Ele não pode viver sem ela.
Agora ela entende. Ela está em um pesadelo.
Agora ele vê. Ele vê você. Não a mim. Você, caro leitor. Pois eu sou Onírio, eu estou por toda a parte. Eu era o seu sonho e sou o pesadelo.
Então ela gritou.
Então ele a olhou.
Meu irmão se deleitou com o pavor.
Sangue por toda a parte.
Gritos dissonantes.
Medo e prazer.
Então vem o despertar.

É 1781. Um jovem pintor pinta um quadro. Seu nome era: O Pesadelo.

CONTOS DA AMPULHETAOnde histórias criam vida. Descubra agora