AMPULHETA IV - O Poço

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Os grãos continuam caindo.

Já passa das uma e meia da madrugada e não se sabe muito o que se pode esperar numa noite como essa. Uma noite cheia de arrependimentos e choros daqueles que recordam as lembranças distantes em suas mentes em dormência. Enquanto escrevo, percebo mais uma vez que alguns sonhos não são dignos de histórias; simples demais e repletos de aleatoriedades, mas ainda são sonhos e por isso jamais devo desprezá-los. Como pinturas do passado que perdem a cor mas nunca seu brilho além da textura.

São nas mais longas vidas que se encontram as mais interessantes histórias, e há quem diga ser possível viver demasiadamente e sequer desfrutar de boas aventuras, flutuando por um caminho desinteressante e monótono. São nas mais efêmeras que encontramos o vigor, a paixão e o fervor que ainda há de ser aceso. Mas de uma maneira demasiadamente contraditória são nas mais longevas que realmente há intensidade, brilho, cor e vida.

Vida.

Enquanto ainda existir vida, existirá histórias.

Eu devo lembrá-los que toda vida é um livro, e suas lembranças são nada mais que capítulos de sua história. Capítulos imparáveis, escritos até não serem mais escritos. Essência encapsulada ou talvez o momentâneo insignificante preso em um eco, um frasco de vidro entre tantos outros. Não há contos vividos que não carregue bons dramas e intrigas, em essencial dores, assim como as mazelas da vida mortal.

Enquanto há vida, há histórias e histórias são eternas.

Não tente evitar.

Continue.

O salão dos sonhos. Neste lugar escuro e repleto de livros empoeirados, eu costumo achar uma certa paz que não existe dentro de mim. Os livros são, de certa maneira, um pedaço do eu que acolhe o outro, e são nestes sonhos, nessas histórias, que minha sede é sanada. Para que estes livros continuem vivos na existência, eu preciso prezá-los, providenciar para que nunca se percam, mesmo que o lugar de origem acabe se perdendo em si mesmo. Me dói estar preso a esse eterno e monótono cotidiano, mas também não me falta sede de curiosidade. O que me falta eu busco em mim mesmo. Eu busco nos sonhos de outros.

O grande Onírio é apenas mais um sonhador...

Alguns sonhos nem sempre são lembranças, alguns são a simples construção de diferentes peças em sua mente, boas e ruins, bonitas e feias. Pegue como exemplo um pesadelo, não é necessariamente algo que lhe dá medo, mas é uma viagem para recintos do seu ser que, em dado momento você se perguntará "eu deveria estar aqui?". É intrusivo e é algo que te força a reviver momentos, deturpando-os e transformando-os em situações de desalento e febris relembranças, quase como um abuso de seu íntimo, algo que não deveria ser tocado, não deveria ser experienciado...

Não deveria ser revivido...

Não desta maneira.

Mas assim será.

Mas devo esclarecer algo sobre os sonhos: Não se deve negligenciá-los. Não ouse tentar afastar os murmúrios de dramas passados lamentando suas cicatrizes incuráveis, e não se atreva a tentar trazer de volta à luz o alívio das alegrias que já se foram que não lhe é merecido. Não se pode, e NÃO se deve tentar manipular as marés do meu sonhar.

Não há como barrar os ventos e a tempestade.

Você será engolido.

De uma forma ou de outra.

Pelo Poço.

O Poço.

Quando somos levados para além do poço, alcançamos os pesadelos. Imagine que existem dois pólos. Um é aquele que te leva para os sonhos agradáveis, aqueles que você esquecerá mais facilmente. O outro é o que te levará para os sonhos mais obscuros, muitos distorcidos e dificilmente farão algum sentido para sua mente primária, e por isso você pode acabar levando-os consigo de volta para o outro lado.

Que lado?

Bem, imagine cada pólo como um poço diferente mas idênticos em aparência, opostos em propósitos e natureza inversa. Duas dimensões espelhadas que te levam para o mesmo lugar, mas com efeitos contrários, um explorando suas belezas e o outro suas feiuras, suas alegrias e anseios ou seus traumas e medos. Sonhos podem te levar para lugares familiares ou estranhos, isso está além do seu controle, e mesmo que você pense estar no controle de seus sonhos, bem, caro leitor, eu sei muito bem que não.

Você anda pelas minhas areias. Areias que tomam forma de uma travessia, um caminho direto para o poço. Você segue o fluxo.

Você olha para o poço. E agora?

O que fazer?

Só há uma alternativa, não?

A dúvida lhe atinge mas não há o que fazer a não ser seguir em frente.

Você se joga, e quando acha que está caindo, já se foi.

Já chegou ao outro lado.

Você está sonhando.

A escolha é apenas momentânea, como uma única piscadela.

Você não notará quanto tempo se passou quando voltar para o outro lado. Na verdade, a possibilidade da escolha; um falso delírio de controle sobre o sonho, passará tão rápido quanto o esquecimento que virá ao despertar.

Do outro lado do poço, não há mais areias. Não. Há lama. Uma escura e densa lama e você é tragado por ela. Você olha para dentro dela, e você se vê. Seu próprio reflexo e sua própria noção de EU. Você é tragado para si mesmo e quando olha mais fundo na lama você se vê novamente, mas não mais como outrora.

Você vê aquele que já se foi a muito tempo atrás.

Você se torna o seu medo. Você treme diante dele.

As suas angústias. Você lamenta pelo o que jaz.

Seus desejos nunca sanados. Você anseia pelo prazer.

Sua fúria e seu pecado. Você sabe que quer e se nega a ter.

Você se torna o seu monstro. Você é dilacerado por ele.

Aquele que aguarda do outro lado do poço.

Você, caro leitor, se torna o seu próprio pesadelo.

E esse monstro lhe devora.

Você acorda.

Hora de viver.

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⏰ Última atualização: Feb 06 ⏰

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