QUANDO EM SUA PRIMEIRA VEZ...
Uma noite densa com um céu azulado, como uma safira escura. O ar é frio e as nuvens são sombrias, não há muito o que se ver.
"Já te perguntaram como foi sua primeira vez?"
Quando lentamente as nuvens seguem direções desconhecidas, se transformando em diferentes formas como uma espiral de amargos olhares, se dá visão a uma lua brilhante como um enorme diamante de beleza inalcançável. Quando tudo está calmo, um grito. Um trovão surge para trazer o susto para aqueles que esgueiram pela noite.
Acordando aqueles que descansam a alma em seus travesseiros. Mas não essa noite."Uma pergunta que pode ter muitas intenções, tantos sentidos... tantas opções..."
Em uma floresta escura, onde somente a escuridão abraça o ambiente entre os galhos, um ser que vive à espreita dorme profundamente em um aguardar natural. Um ninho fundo a balançar com o vento. Um ovo. E este ovo tem uma rachadura, que se revela maior a cada movimento brusco do ovo.
"O primeiro toque entre dois corpos se entrelaçando em uma troca de energia, um olhar, uma palma, um beijo. Lábios se tocando, de pessoas que acabaram de descobrir algo que eu senti por tão pouco tempo."
Como um chamado. Como um choro, ou até um berro. Ele quer sair, sair de seu ventre ambulante.
"Se pensar bem, uma primeira vez pode ser qualquer coisa. O primeiro pedaço de bolo que você comeu quando era criança, a primeira vez que desapontou seus pais, a primeira vez que bateu em alguém na escola, ou até mesmo agora, a primeira vez que eu ultrapassei o limite que coloquei a mim mesmo. Não posso ter, não devo ter, mas quero ter. Um amor. Me torno sujo, me torno alguém que apossa, me torno algo obscuro, alguém que quer, alguém que deseja, alguém que sente, alguém que ama, e eu gosto disso. Por algum motivo eu posso e eu temo que isso seja prazeroso."
O ovo está chocando e uma grande rachadura se abre. Os pedaços de sua primeira casa começam a cair de seu ninho. A chuva aumenta de maneira anormal. O bico sai para fora suplicando por um novo ar, um novo aroma, uma primeira vez do lado de fora. E ele a tem. Ele pode sentir...
"Na vida há muitas rachaduras. Rachaduras no tempo que nos mostram o passado. Coisas ruins são lembradas mais rapidamente e de forma mais inesperada possível, enquanto coisas boas se perdem como filhotes na chuva."
Lentamente o pássaro sai do ovo. Suas asas se abrindo como uma recém nascida criatura da noite. O bico para baixo, se erguendo de seu nascer. A asa sobressai sobre o ovo, abaixando devagar, enquanto as trovoadas ao fundo parecem chegar com mais chuva e um vento tão forte quanto uma onda do mar. A pobre criatura está encharcada e sozinha.
"Há certas lembranças inevitáveis de serem esquecidas. As pessoas estão ocupadas demais observando o mundo se comer como moribundos em um beco qualquer, como pessoas perdidas na ilusão da idade. Há tanto para se apegar, por que tão se apegar, não é mesmo?"
Lá está o recém nascido. Um pequeno filhote de corvo. Ele sente que agora está livre. Ele sabe sim. Colocando suas patas para fora, se inclinando, dando seus primeiros passos, saindo da casca que o protegia do mundo e dos perigos que lhe perseguirão.
"É triste. Saímos de um casco ambulante para apenas ver uma luz ínfima e passageira. Uma ilusão de prazer. Pois desde a primeira vez que eu vi a luz... a primeira luz, eu não me lembro mais. Mas você viu, nem você se lembra, mas nós vimos. A realidade é que ela não existe mais, foi apagada por mãos de falsa modéstia. Essa luz da certeza de que há o bem e de que o mal há de ser vencido. Uma ilusão do amor embutido."
O corvo está fora e na frente de sua antiga moradia ele se estende com pés trêmulos. Pequenas asas para baixo com penas prematuras cobrem seu corpo. Ele continua olhando para baixo enquanto seus sentidos começam a se aguçar e pouco a pouco ele começa a entender o que está ao seu redor.
"Amor, que senti tão pouco, tão pouco tempo nos braços de uma dama de vermelho em uma grande escuridão de onde ela um dia me tirou. A dama do amor e da justiça. Cega demais ela não possuía sequer uma língua. Mentirosa. Eu a tive um dia. Eu não sinto mais essa coisa chamada complacência. Agora não é mais nada, nem mais que uma amiga, ela foi esquecida por mim. Tirada de mim, em um golpe que gerou perda e rancor. Não há razão, apenas memórias que se apagam, apenas a ilusão."
O corvo abre suas asas abrindo seu bico e encarando o céu chuvoso. Suas patas agarram o ninho que quase despenca. Ele grita, um pequeno berro de súplica. O primeiro. Uma trovoada.
"Eu não pude suplicar, nem lamentar. Não pude implorar diante as atrocidades... eu só pude gritar, berrar de ódio PELA PRIMEIRA VEZ. A luz me deixou naquele dia. Só consegui sentir a perda e minha sanidade esvair-se dando espaço para uma vontade insaciável..."
O pequeno corvo grita, grita pela liberdade que ganhou. O nascer de uma criatura livre e forte. Livre, e capturado por uma ave muito maior que espalha suas penas jovens no ar, junto com um ninho e as cascas de sua antiga moradia.
"Mundo cão esse mundo real. Mundo sem luz. Eu vi você mudar, devagar, como se fosse natural, mas era mentira. Tudo mentira. O que diabos é a luz afinal quando ela lhe abandona? Ande, me responda, dama de vermelho!"
DEBAIXO DAS SOMBRAS DESTA ASA FRIA...
É escuro. Somente escuridão. Nesta escuridão uma luz surge, partindo-a. Um rosto toma espaço, mostrando inocência e ingenuidade. Um recém nascido em mãos brancas o trazendo para a luz. Ele olha para cima e sorri.
Mas quando ele é puxado para a luz, essa mesma luz o cegou. Sangue da pureza ao redor, um mundo que não o merece. Uma mão o segura enquanto ele chora e o sangue se espalha por todo lado. Seria esse um pesadelo? Seria essa uma lembrança de outrem? Como distinguir?
Imaculado. Os olhos do bebê demonstram dúvida e medo. Olhos amarelos lacrimejados, como âmbar polido. Cada vez mais penetrantes, os olhos do bebê ficam cada vez mais amarelos. Em um horizonte branco e aquoso, uma torre se ergue espalhando uma tinta vermelha.
Ao olhar mais a fundo, há algo dentro. Algo preso. Algo adormecido. Algo aguardando a sua vez. Sua primeira vez. A torre aumenta, penas negras caem ao redor, sons tomam o lugar com dor e súplica.
Esses olhos hão de mudar com o tempo. Esses olhos se tornarão em algo diferente. Algo que busca o que se nega.
VOCÊ RENASCEU.
Da torre um homem emerge rodeado de seres que assim como ele aguardam a mudança. Uma sinfonia de asas toma o vazio que agora é puro escuro.
Eis aqui um corvo em busca de luz.
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CONTOS DA AMPULHETA
Short StoryUma coletânea de contos criada por Dyandrio Souza ao lado do Eterno dos Sonhos que escreve suas histórias ao vislumbrar os devaneios alheios. Quais maravilhas ou tormentos virão disso, não é mesmo? (Todos os contos inclusive os especiais se passam o...