"Na nossa loucura
Nós queimamos cem dias
O tempo leva tempo para passar
E eu ainda tenho algumas cinzas para mim
Um sonho ocasional"
- An Occasional Dream, David BowieSolidão.
É uma velha amiga, e mesmo que eu não me lembre bem, ela estava lá antes mesmo de eu ver a luz pela primeira vez. Ela reaparece novamente, e eu abro a porta. Mais uma vez.
O Escuro.
É um pai distante. A espreita. Contudo, sempre esteve presente, até mesmo quando eu comecei a enxergar o mundo cada vez mais azul e belo. Escondido, distante, o bastante para que a sombra ficasse mais turva. Distante mas comigo. Aguardando as brechas que o futuro traria. Ele tenta me mostrar o caminho entre as brechas. Me prosto a segui-lo. Mais uma vez.
Amor.
Uma mãe querida. Como é bom estar em seus braços, como é bom sentir seu calor, e como é bom receber seu carinho. Os estalos dos dedos que trazem alívio para minha tensão de espírito. Me deixe levar pelas suas ondas geladas e sua farta alegria. Eu a negligenciei por tempo demais. Segurei-a em minhas mãos por tempo suficiente para que perdesse a noção do próprio tempo e a deixei cair. Senti sua falta antes mesmo de perdê-la e agora mais uma vez me nego a acreditar que a terei novamente antes mesmo de a tê-la de fato... mais uma vez.
Vida.
Vivemos. Vivemos demasiadamente. Queremos viver. Queremos mais. Não queremos. Temos medo de não viver mais. Até querermos novamente. Mais uma vez. Nunca mais. Será? Penso sobre o fim. Penso sobre os anos que virão. Estarei sozinho? Tenho medo. Até não pensar mais.Eu me vejo sozinho em um quarto escuro. O teto é distante e as paredes frias. Meus pés suam e minha mente se esvazia. Quantas vezes eu já me senti assim? Por muitos e muitos anos de minha infância o único amor que senti fora daqueles que compartilham do meu sangue, ou melhor... do sangue que me colocou neste mundo turbulento e confuso. Mas eu me forço mais um pouco a entender. A me colocar aqui. A ter um lugar. A ser alguém. Diferente daquele que todos apontavam, mas aquele que apenas eu achava melhor. Suficiente. Eu falhei. Falhamos todos os dias, até que conquistamos.
Conquistamos o amor sem perceber que foi uma conquista, então perdemos e percebemos que fomos uma decepção, antes para nós mesmos, logo para todos silenciosamente sussurrando pelos cantos. Uma decepção para o outro, uma decepção para o próximo, uma decepção para si mesmo. Mesmo que diga que não, eu sei que é a pura verdade. Mesmo que tente negar a verdade não contada, eu sei que é e que no fim foi negada a oportunidade de reconsideração. Dissipando-me nas areias do tempo, imparáveis e sequiosas. De nada valeu as promessas e fortificações que criamos! Oh doce dama de azul! Seu nome é realmente Amor? Sim. Então ela vem. Como um meteoro em chamas diretamente em seus sentimentos mais sombrios. Sim eu sempre a amarei.
Não queremos mais o sagrado. Lhe dizem que por pensar assim, por sentir assim, é doente e fraco. Covarde! Como pode? Lhe empurram cada vez mais para os cantos escuros da casa sem perceber. Nós tocamos no sentimento mais perigoso e doloroso, aquele que surge lhe tentando, lhe consumindo, lhe perguntando: para quê continuar? Eu nego ambos. Existe muito para se viver.
Meus dias sempre foram iguais, sem muita novidade para contar. Mesmo sem um trabalho concreto, os objetivos e as ambições sempre me rodearam, e minha dedicação sempre direcionada a isso. Eu acordo, me alongo, respiro fundo e vou ao banheiro. Eu preparo algo para comer, faço carinho nos gatos e coloco uma música que me agrade. Eu como, produzo, leio, assisto e almoço. Nino sobe em cima de mim e eu faço carinho nele até ele cansar e decidir ir embora. Eu leio, produzo, me exercito e descanso. Eu volto ao trabalho, volto a ler, assisto algo e durmo. Um ciclo. Uma roda que gira. Eu me forço a seguir essa roda como a massa que habita esse mundo. Seguindo os mesmos hábitos e as mesmas manias que eu um dia critiquei. Hipocrisia é uma penumbra.
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CONTOS DA AMPULHETA
Short StoryUma coletânea de contos criada por Dyandrio Souza ao lado do Eterno dos Sonhos que escreve suas histórias ao vislumbrar os devaneios alheios. Quais maravilhas ou tormentos virão disso, não é mesmo? (Todos os contos inclusive os especiais se passam o...