II. Alma Doente

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    "Perdidos em teus domínios, renunciarei à luz e abraçarei as trevas. Que teu poder nefasto guie meus passos e queimem as esperanças que um dia tive."

    O sopro da vida lhe foi devolvido, seu corpo saltou e o peso da respiração tomou seus pulmões. Ela abriu os olhos que ardiam, enquanto aos poucos cada extensão de seu corpo voltava a ter seus movimentos, estava fria, rígida e com medo.
    Ela apenas não conseguia ainda ouvir nada, mas sabia que perto de seu corpo havia uma pequena claridade amarelada que pertencia a uma fogueira, por cima de seu corpo repousava um manto grosso e escuro. Conforme se mantinha estática, memórias de antes de “apagar” voltavam a lhe rondar. Aquele homem sempre lhe fez mal desde que foi aprisionada, ultrapassou o limite da racionalidade a sua e ao todo, era um selvagem desequilibrado, não um homem.
    Antes de apagar, ela voltou a orar, quando  jurou nunca mais fazer, já que havia perdido sua fé naqueles que um dia acreditou, mas ela voltou a clamar a misericórdia para que, no mínimo aqueles sete deuses na qual orou, pudessem ter a bondade que não levar sua alma ao inferno, não deixá-la sobre mais até mesmo na sua morte.

    Por algum tempo, não ouvia nada, até voltar a ruídos e até conseguir ouvir o farfalhar das árvores, o estalos do fogo e o chiado de uma respiração pesada.
    Já conseguia se mover, mas não tentou mover um músculo ao perceber que havia uma criatura curvada e sentada um pouco à frente de seu corpo.  Essa criatura era gigante, forte e pálida, tinha o rosto de um humano, um homem adulto com a pele pálida como um enfermo, mas seu tamanho lembrava um enorme touro. Cassandra mesmo sendo de outro país, outra cultura, sabia que aquele a sua frente havia grande possibilidade de que aquela criatura era um ser maligno e vindo das mais profundas rachaduras do inferno, dono do Caos, senhor do Terror, mas também teria a possibilidade de ser um demônio qualquer.

    Ele tinha sua visão presa ao fogo: — Como uma criaturinha imortal consegue ser tão fascinante? — Perguntou a criatura.
    — Estou morta?
    — Não.
    — Que pena.
    — Criaturinha fascinante, pela primeira vez em milênios ouço um mortal dizer isso. Geralmente, os mortais imploram por suas vidas, pedem misericórdia, buscam a eternidade ou fogem por medo — ele virou o rosto em direção a Cassandra — com medo de que eu os devore.
    Cassandra se levanta com dificuldade, ainda estava rígida, ainda estava fria: — Talvez se você o fizer, eu poderei voltar para onde estive: no inferno.
    — Não desperdice meu paladar com um cadáver que respira, alguém de alma doente.

    Ele estende a mão a ela, ajudando-a se sentar melhor, oferece a ela um pedaço da carne que era de um grande animal, estava morna e ainda escorria sangue. Ele rasgava a carne dos ossos como se estive a milênios sem provar daquilo, ele não piscava, ele não respirava, ele era apenas um casco vazio que se movimentava ou falava e resmungava de vez em quando, seu tamanho desproporcional, a voz rouca e arrastada, ou até mesmo seus dentes pontiagudos não faziam jus ao seu rosto, que era simples e doente.
Cassandra comeu aquele pedaço de carne até virar um único pedaço de gordura fria, enquanto aquele demônio desapareceu na mata e voltava com outro animal abatido

    Ela se manteve na mesma posição por horas naquela fria madrugada, com a carne em mãos sentada no chão de pedra rachado das ruínas. Não estava com medo daquele demônio, apenas se sentia mal por ter quase morrido e ter sido salva por ele, os trapos que ela vestia estavam sujos pela aquela gordura fria, com o rosto sujo, pés inchados e mãos trêmulas, respiração bem fraco e chiava bem baixo, sentia que seu peito estava muito leve, sua respiração era como se fosse desnecessário, o demônio antes do amanhecer, se levantou e caminhou até a entrada da floresta, a mesma da qual a criatura peluda surgiu, parou por alguns segundos antes de dizer:

    — Pequena mortal, tente voltar para sua casa, você está livre agora.

    E desapareceu.
    Simplesmente, sumiu como fumaça, Cassandra se levantou também, largou a carne, passou a mão nos trapos que chamava de roupa e começou a andar em círculos, sua pele continuava fria, roeu suas unhas, se arranhava, olhava para todos os lugares muito rápido, tentava puxar sua respiração. Seu corpo tremia enquanto andava, logo, com o sol no seu topo, ela parou seus meros murmúrios, parou de andar, olhou em direção que seguiu o demônio, passou sua unha machucada no braço direito, arrancou uma boa parte de sua pele e deixando um filete de sangue escorrer, começou a andar naquela direção muito rápido, mas ao pisar fora das ruínas, seu corpo caiu, desabou com o peso de algo inexistente. Tentou se levantar devagar, mas era como se o ar estivesse esquentando, o ar agora tinha um peso descomunal, seus pulmões ardiam em chamas e seu coração acelerou.
    Cassandra ficou jogada ali no chão por várias horas, até conseguir se levantar e lentamente seguiu rumo a floresta, com o peso ainda nos ombros, seguiu entre as árvores e pisando descalça sobre folhas secas e galhos podres. As árvores conforme ia se aprofundando tinham colorações variadas: das verdes comuns, as vermelhas outonais, a folhas de ouro presas em galhos pretos sem luz. Cassandra se encostou em uma das árvores quando ao longe avistou uma criatura, não era o demônio, mas era tão alto quanto, usava um manto avermelhado, um cajado em sua mão e uma máscara presa no manto, ele tinha vários animais silvestres ao seu redor. Era um rapaz quase, mas só um pouco, parecido com aquele demônio, o seu lado direito do rosto havia uma joia esverdeada no lugar do olho, um sorriso acolhedor, a pele tão escura e bonita, aves pequenas pousaram nele em busca das sementes dadas pelo rapaz, um pequeno pássaro azul pousou sobre a cabeça dele, sacudiu-a soltando um pouco das várias tranças longas ornamentadas com joias douradas, Cassandra o observava atentamente.
    Até o momento que o sol apagou deixando tudo um completo breu, o céu escureceu e as nuvens sumiram, ele olhou para cima e os animais correram.
    Um clarão desceu dos céus sobre eles dois, a criatura colocou o capuz, bateu com o cajado no chão e desapareceu.
    Aquele clarão tomou forma, transformando-se em algo, um ser iluminado, um ser divino. Cassandra se abaixou e observou-a com esplendor.

    Com uma voz macia e delicada ecoou: — Zelofeade — sua voz mansa percorreu toda a extensão da floresta, ecoando nas cidades próximas, estremecendo as árvores e montanhas.
    Das sombras, o demônio surge irritado: — Vejo que continua igual, Galinarael, está sempre onde não é convocada. Intromissão tornou-se hobby para você?
    Aquele ser divino moveu a cabeça lentamente, balançando o manto branco que cobria da cabeça aos pés, o nariz apontou na direção que Cassandra se escondia: — Pequena alma machucada... — se moveu até um pouco mais dela — em ti confio numa tarefa. De cuidar dessa alma, tão fragilizada e abalada.
    — Não mesmo. — Disse Zelofeade enquanto observava a Divindade falar em direção a mulher, mas a “tarefa" era direcionada ao demônio.
    — Você não tem voz, Zelofeade. — Disse a Divindade — Em tuas mãos está o poder da força para transformar a dor em renascimento e esplendor. Proteja essa alma com tua sabedoria e compreensão. Guia-a na jornada rumo à sua própria redenção.
    — Fui liberto de meu aprisionamento a poucas horas, e você já conseguiu me irritar — Zelofeade se vira para onde estava a garota — Talvez, só um talvez, eu volte a querer atear fogo nos céus novamente, Galinarael. — Estendeu a mão e magia fluiu, ergueu o corpo dela e a trouxe até aqueles dois seres poderosos — Cuidar dessa criatura miserável? Me diz que nesses milênios aprendeu a fazer piadas?
    Cassandra foi posta no chão, entre aqueles dois seres grandiosos que exalavam poder, malícia e soberania. Tal, Galinarael, toca leve a pele fria da única mortal e fraca: — No olhar dela, há ternura e cumplicidade. Crescer e florescer, encontra-te sua própria sina. — seu toque era frio e quente, acolhedor, temeroso — Um elo invisível, que os une nesse afeto completo. Seja, companheiro fiel, na jornada que trilha.  Ela, será sua guardiã do tempo e dos sonhos. Está o juramento silencioso, entre esses dois compromissos, palavras não necessárias para expressar, por essa forte presença, que abençoa essa união.
    Um tremor supriu o desejado, o poder que o demônio exalava ficou mais forte e agressivo, ele estava possesso de ira: — Não ouse fazer seu jogo de palavras, Galinarael! Sua covardia me impressiona. Sua palavra benevolente e onisciente não passam de merda saindo dessa sua boca imunda.
    — Criança, teu desafio reside na dificuldade de escutar e de comunicar-te. Permaneces arrogante e impulsivo, mas é preciso aprender a ouvir antes de expressar palavras cruéis. — A pressão mágica entre eles estavam pesadas, era como se houvesse toneladas pressionando a garota para baixo e para os lados, seus ossos estavam doendo, seus músculos pareciam rasgar — Cuide dessa alma. Assim, vos digo singelo e sem alarde. Dois destinos se unem, sem distinções ou convenções. Cuide-a bem, ouça-me e eu ouvirei o que tem a me exigir.

    Quando a Divindade terminou de falar, não dando tempo para o demônio retribuir sua ira, como da mesma forma surgiu, desapareceu. Um trovão rasgou os céus e o mesmo clarão surgiu. Zelofeade estendeu a mão para cobrir o rosto de Cassandra, evitando que a deixa-se cega, mas ele não, seus olhos não tremeram perante a luz, ou sequer se moveu durante a pressão mágica entre eles, ele era além de formidável, além de pavoroso.
    Até os olhos de Cassandra voltaram a enxergar novamente, ela se ajoelhou pondo as mãos sobre eles, completamente curvada sobre a grama, até outra presença mágica surgir, era bem leve, o cheiro de magia era como esta em um campo de flores de lavanda, sons dos animais rondando o lugar e  aves pequenas pousando sobre qualquer um dali.
    Sentiu o solo afundar levemente, esse ser exalado em lavanda se ajoelhou na frente dela, passou as mãos sobre sua cabeça, desceu aos cabelos sujos, aos braços e seguramente as mãos que cobria os olhos. Removeu elas e posicionou a frente de seu rosto, agora, não era mais lavanda, sim um odor amargo desagradável e nauseante. 

    Outra voz calma e masculina ecoou sobre ela: — Abra seus olhos, garotinha.

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