Estou na frente da borracharia "Anti-The Voice, use nossas borrachas para o seu pneu não cantar". É um lugar modesto, não tão requintado quanto outros bairros mais chiques da superfície, mas ainda é a superfície. As paredes são pretas um pouco gastas, uma placa com o nome da borracharia brilha em luzes azuis no alto, há algumas grades rodeando a entrada de maneira que um portão de correr pode ser usado para fechar mais tarde, mas sem atrapalhar a entrada de carros, há alguns deles no pátio sendo avaliados. É um lugar normal se você não é da região e passa por aqui desatento, mas quem fica mais que o suficiente para bater algum papo com qualquer morador daqui sabe de certas histórias que rodeiam esses borracheiros e seus companheiros. João da Graxa, não reconheci pelo nome mas agora, vendo pessoalmente, me lembro de passar por aqui e cumprimentá-lo, nunca nos falamos diretamente mas sei que sua irmã é colega da Dinha no restaurante, mundo pequeno. Ele me vê e caminha em minha direção. Ele limpa as mãos sujas de graxa na camisa para me cumprimentar e diz:"No que um borracheiro ocupado pode ajudar a senhorita?"
"Olá João, como vai? Eu esperava que pudesse me ajudar com algo em particular. Me disseram que você seria o cara certo para isso." Disse sem ser direta, alguém poderia estar ouvindo.
"Eu fico lisonjeado de te ajudar com o que quer que seja."
"É assim, meio particular realmente."
Ele franze o cenho discretamente.
"Poderia me dizer quem indicou minha ajuda?"
"Na verdade não tive tempo de perguntar seu nome. Era um sujeito mais velho com barba cheia e cabelos lisos loiros, ah e ele também tinha uma tatuagem na mão." Descrevi.
Ele fica sério. Uma mecha de seus cabelos verdes cai sobre seu rosto e ele assopra.
"Venha, vamos tratar o "assunto particular" em particular."
"Eu posso conseguir os tais medicamentos para você, mas vai ter que esperar uns dias porque os policiais estão na cola dos meus parceiros." Avisa João.
Estamos no depósito de produtos. Aqui é apertado e tem um cheiro forte de álcool, não tenho certeza se são dos produtos ou se são das garrafas não identificadas vazias de baixo de uma prateleira.
"Eu não tenho interesse nos remédios. O cara me disse que você também poderia ajudar a descer até o recife." Digo finalmente.
"Ah nesse caso…" ele abaixa a voz em tom conspiratório "Veja isso com Miudinho, o careca trocando o pneu. Eu não me envolvo com isso, meu negócio são só os bagulhos. Por favor não quero mais saber disso, entendeu?"
"Claro."
Miudinho tem a pele marrom, uma barba por fazer, 1,83cm e é musculoso, com certeza esses músculos não são apenas de levantar pneus grandes.
Eu explico a situação e ele me diz que pode me levar com ele na próxima passagem às 00:00.
"Eu preciso mais cedo, de preferência agora."
Resmungo.
"Agora eu estou trabalhando, não vê? E não posso mudar o horário da passagem ou levar você sozinha, tem outras pessoas que vão passar." Afirma Miudinho.
"Você não entende. Eu tenho uma reunião com o prefeito hoje e é a minha única oportunidade de vê-lo, então eu preciso poder questioná-lo sobre o que vem acontecendo, mas para isso eu preciso saber sobre o que está acontecendo." Digo com uma expressão de raiva.
"Não me importa se você vai ver o prefeito ou o Papa. A próxima passagem é hoje à meia noite, é isso ou nada." Ele diz tentando parecer mais arrogante, eu sei jogar o jogo da arrogância.
"Escuta aqui." Altero o tom de voz "É bom você me deixar passar agora ou vou ser a primeira a abrir a boca sobre os esqueminhas que você faz nessa borracharia que com certeza não ganha o suficiente pro dente de ouro que você tem nessa boca bafuda!"
As pessoas nos encaram, tanto no estabelecimento quanto na rua. Ele quase sussurra quando diz que vai dar um jeito.
João da Graxa ficou muito atarefado, tendo que dar conta dos clientes dele e de Miudinho.
Está no meio da tarde e estou no porão de um Motel velho nas áreas mais afastadas da ilha. Miudinho está discutindo com uma colega. Acho que trabalha no Motel. Ela está brigando com Miudinho dizendo que alguém poderia ter desconfiado, acho difícil, a rua está vazia e só tem ela na recepção. Miudinho vira para mim.
"Olha é o seguinte, você vai poder atravessar mas vai sozinha."
"Não vejo problema nisso."
"Não é só descer não, quando você descer aquele elevador você vai estar dentro de uma caverna que está quase por completo congelada, há apenas um espaço estreito para se arrastar entre o gelo e é perigoso, portanto tome cuidado, não me responsabilizo por você."
Concordo sem um pingo de medo.
Já estou descendo o elevador. Vejo os rostos de Miudinho e sua amiga subindo e ficando para trás pela janela da porta.
A água está fria como nunca antes. Há algum trecho considerável que vai se estreitando aos poucos. Vou em frente.
Penso no que vou encontrar quando chegar em casa. Minha mãe preocupada comigo, será que ela já arranjou um emprego? Ninguém quer contratar separadores de algas e corais hoje em dia, já estão inventando máquinas para isso, e os outros lugares estão todos cheios. Ainda bem que tenho Lótus ajudando ela. Ele mesmo ganhando tão pouco na sua loja de perfumes artesanais sempre quer dividir seus lucros comigo, até mesmo se dispôs a cuidar da minha mãe enquanto eu estivesse fora. Lótus, ah Lótus… ele não queria que eu viesse, claro ele acha tão importante quanto qualquer um acabar com esse problema climático mas ele não queria que fosse eu a fazer isso. Se ele soubesse o quanto me senti útil pela primeira vez na vida com isso, se ele soubesse.
Saio de meus devaneios por um momento. Está começando a ficar apertado mas estou quase no final.
*Crack*
Ouço esse barulho, algumas das partes congeladas sobre mim começam a se partir. Eu me apresso.
Minha respiração fica ofegante e forma bolhas ao meu redor.
Atrás de mim despenca o teto congelado, eu corro o máximo que dá e por um triz quase sou esmagada. Me recupero do susto e sigo para casa.
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Entre Águas Fúcsias
AdventureApós sobreviver a um sequestro em alto mar, Azaleia precisa resolver problemas climáticos na ilha onde reside e lidera a oposição contra o governo atual em divergências políticas, será que Azaleia poderá tornar sua casa um lugar agradável de se vive...