Oiee
Avisos:
Esse capítulo vai ter algumas partes que vão conter transfobia e menções a tortura.
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Julho, 1971
Conseguia ver claramente a animação de seu irmão quando, em mais um dos típicos jantares de domingo, uma coruja branca entrou pela janela e pousou em seu ombro. Entre suas garras afiadas, segurava uma carta. Uma carta com o selo da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.
Viu quando Sirius retirou a carta e começou a pular e gritar de felicidade pela sala de jantar, assustando a pobre coruja e irritando a mãe de ambos.
Também viu quando Walburga se levantou, varinha em punho, o silenciou com um feitiço e arrancou a preciosa carta de sua mão.
Finalmente, Sirius se sentou, irritado. Walburga lia silenciosamente a carta em suas mãos. Ao terminar, guardou o papel no bolso de seu vestido. Finalmente, disse:
- Vamos comprar as coisas amanhã. É melhor que você não fique amigo de algum traidorzinho de sangue nojento ou de um sangue ruim miserável.
Era fria como gelo, cortante como a lâmina de uma espada recém-afiada. Pensou que apenas sua voz seria capaz de cortar carne, músculos e órgãos de seu corpo apenas com uma palavra. Não pela primeira vez, sentiu medo. De quê? Não sabia. Mas temia.
Como poderia não o fazer? Quando estava acostumado a gritos e dor. Vozes frias que não diziam nada e silêncio doloroso que dizia muito. Portas trancadas, fome, estoques de comida, ameaças e mentiras. Como poderia não temer, quando tudo o que conhecia era o medo?
◇◇◇
Seu corpo doía. Sua mente doía. Sentia falta do toque do irmão, tão quente naquela casa tão fria. Será que assim seria todas as noites, depois que ele fosse embora? Depois que ele o deixasse ali. Não que o culpasse por isso. Também queria ir.
Não conseguia dormir. Sentiu vontade de entrar no pequeno ciclo vicioso que havia criado para as noites de insônia. Se levantar, ir até o pequeno banheiro em seu quarto e passar as próximas horas no chão, encarando sua imagem distorcida em seu espelho de mão. E pensando. Sem parar.
Muitos dos seus pensamentos se voltavam ao que havia de errado com ele. Não sabia como explicar o fato de que seus braços não se ajustavam da forma correta, presos aos seus ombros. Que sua pele ficava muito apertada ao seu corpo. Não entendia como mais ninguém se sentia distorcido, estranho, ao se olhar no mesmo espelho que ele se olhava, a vestir as roupas que ele vestia. Ninguém iria entender o que ele queria dizer se dissesse que seu próprio rosto não era... seu. Como poderiam? Não conseguia entender a si mesmo.
Sabia, no entanto, que algo estava definitivamente errado. Isso, a certo ponto, levou as centenas de noites em que se sentou sozinho no chão de seu banheiro, acusando silenciosamente a pequena garota no espelho. Ele queria que ela fosse machucada. Ele que ela sumisse. Não era estúpido, sabia que estava olhando pra si mesmo. Só não sabia como poderia estar olhando para seu próprio corpo e ver alguém tão... irreconhecível.
Então, como sempre fez, pensou.
Pensou em todas as noites em que se olhara no pequeno espelho e desejou ter outro corpo, outra voz e outro nome. Desejou ter outras roupas e brinquedos, outra casa e principalmente outra família. Desejou que tudo aquilo fosse apenas um maldito pesadelo e ele, finalmente, fosse acordar.