Já faz quase uma semana que o Michel me disse aquilo. Uma das coisas que tem me deixado mais intrigada, não sei explicar com exatidão, me sinto vendendo a alma. Mas, vendendo a alma para um demônio muito, muito gostoso. O que se pensar bem, é loucamente tentador.É mais um daqueles dias chatos, completamente entediantes que eu não suporto. Eu sou uma pessoa animada sempre, mas uma terça à tarde, é ridiculamente chata. Ninguém sai para beber numa terça por exemplo, não tem ensaio, meus irmãos mais velhos estão trabalhando e o Lorenzo está na escola.
Eu sinto saudade do Brasil, sempre tinha alguma coisa para fazer. Tudo bem que eu era uma criança quando vim para cá, mas me lembro perfeitamente de brincar na rua, ou de ir passear, ou até assistir desenho e tudo mais que havia para fazer em uma terça à tarde. Aqui é simplesmente um saco, mesmo assim, não quero passar o dia inteiro reclamando.
Finalmente decidi ir comer algo, que pode ser um dos motivos do meu mal humor. Fui praticamente me arrastando até a cozinha pegar uma xícara de café e talvez um biscoito, mas quase dei um pulo quando vi Lorenzo na cozinha.
— Puta merda. - Coloquei uma das mãos no peito respirando fundo - você não deveria estar na escola?
Ele se manteve em silêncio, e eu já entendi o que rolou. Ele tem algumas crises de ansiedade e fica assim depois, sem querer conversar muito, o que diferencia por completo seu humor normal, essas crises tem ficado mais frequentes. Apenas me aproximei e dei um beijo na bochecha dele.
— Quer a coisa mais americana que você puder pensar? - Sorri suavemente caminhando em direção a geladeira.
— Waffles? - Ele se virou em minha direção e sorriu ainda com o olhar triste.
— Você me conhece tão bem.
Eu peguei tudo sorrindo e fiz waffles para nós dois, me sentei ao lado dele e começamos a comer, sem conversar muito ainda, mas sempre juntos como sempre.
— Maninha. - Ele chamou minha atenção e eu me virei para ele - eu tô com um pressentimento ruim, eu estava pensando demais em um monte de coisas, e na hora do treino, eu desmaiei.
— Meu Deus, Lorenzo! - Segurei seu rosto meio assustada e o encarando - como você está agora? Se machucou? Você veio sozinho? Por que não me ligou!
— Ei, eu tô legal, um amigo meu me trouxe até aqui, tá tudo bem. - Ele segurou as minhas mãos.
Continuamos conversando por um tempo, está sendo até um dia normal. O Carlos chegou em casa antes do João, mas ele também não demorou muito, e olha que ele sempre chega mais tarde. Gosto de ao fim do dia ter a casa cheia novamente, me sinto solitária sem os meninos.
Resolvemos fazer uma noite do filme. Com direito a pipoca, cobertores e um filme aleatório que encontramos por aí. Sempre fazemos noites dessa, normalmente com o papai junto, ele criou essa "tradição", quando éramos novos assistíamos filmes de princesa, já que a princesa da casa sempre escolhia os filmes. Hoje assistimos algum filme de ação.
Estava tudo bem, estávamos nos divertindo e zoando uns com os outros, sempre fomos muito unidos, de todas as formas possíveis, e com o meu pai também, ele sempre foi bem mais próximos de nós do que a nossa mãe. Ele que penteava meu cabelo quando eu era mais nova, mesmo tendo uma imensa dificuldade por conta do volume, ele que ia nas minhas apresentações de violino e todo resto que meu pai fez por mim. Mas, desde alguns meses ele tem andado distante, chega tarde e sai muito cedo, admito que isso tem me deixado estranha, eu gosto de tê-lo por perto. A gente tem a piada que ele deve estar com uma namoradinha no trabalho, por isso nem nos metemos, por mais que eu e minha curiosidade quiséssemos nos meter.
Como eu disse, estava tudo bem, até a quela ligação. O celular do João tocou e ele imediatamente atendeu e levantou, nós achamos estranho, mas, nem nos atentamos muito, até olharmos para ele, vermos sua expressão mudar em milésimos de segundo, até todos ouvirmos o grito dele e levantarmos em desespero todos ao mesmo tempo, em perfeita sincronia. Meu corpo inteiro se arrepiou só de o ver daquela forma, e nós não entendíamos. Até eu pegar o celular com as mãos tremendo.
— Quem é você!? O que disse pro meu irmão? - Mesmo assustada, minha voz soou feroz.
— Senhorita Lorena? - Uma voz desconhecida respondeu, eu pude o ouvir murmurar.
— Sou eu, agora responda as perguntas.
— Eu não gostaria de ser quem dá esse tipo de notícia, mas infelizmente, seu pai, o senhor Marcus... - A voz calou.
— O que tem meu pai? Diga logo inferno!
Minha visão embasou de vez, as lágrimas do meu irmão tem explicação, algo aconteceu com o nosso pai. Carlos e Lorenzo me olhavam assustados enquanto tentavam segurar o João, que estava inconsolável.
— Nós não temos certeza do acontecido, mas seu pai foi assassinado. Eu sinto muitíssimo, ele ainda foi levado ao hospital, mas não resistiu, eu sou um amigo próximo dele e com todo o pesar, não queria ter dado tal notícia.
As últimas palavras já sumiram na minha cabeça, agora estávamos todos perto o suficiente para ouvir, mesmo sem estar no viva-voz. Nós nos encaramos e as minhas últimas forças saíram lentamente pelos meus lábios em forma de palavras.
— Obrigada por avisar.
— De novo, eu sinto muito, de todo o coração. Estou na porta do hospital Saint Louis, não acho que vocês queiram vir agora, mas caso queiram...
— Tudo bem, estaremos a caminho. - Simplesmente bati a mão no celular para desligar a chamada.
Os três me olharam e eu estava em choque, já tinham lágrimas nos olhos de todos nós, mas eu, me mantive em choque. As lágrimas não saíram, e não acho que irão.
— Troquem de roupa, por favor. Nós iremos até lá.
Ergui o corpo, segurei meus irmãos e os ajudei a subir as escadas de nossa casa.
Meu pai...
Afastei os pensamentos o mais rápido que pude. Lorenzo chorava como uma criança corrigida, eu vesti uma blusa de frio nele. Carlos ajudou João a subir, eu fui até lá vê-los, eles choravam juntos.
Eu não consigo chorar.
Depois de todos se trocarem, os coloquei no carro para levá-los até o hospital.
Pode ser um engano... certo?
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Notas
RomantizmQuando algumas portas se fecham, outras se abrem. Para Lorena, isso se deu com uma perda dolorosa, de pouco em pouco coisas vieram a tona e remexeram seu passado. A vida dessa violinista nunca mais seria a mesma.