São Paulo 2015

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Fugindo de mim mesmo e de todo meu passado. Me pagando eu finjo, mato amores, em vão




Não era um ano fácil. Na verdade não tinha sido uma vida fácil. 

Sua família era parte de uma coisa muito maior do que ele, dinheiro, tráfico, balas perdidas. Era o que regia a vida de Ricardo desde que ele se entendia por gente. Diziam os boatos que a vida antes era fácil e boa, com uma casa normal e uma família minimamente estruturada. Mas quando ele fez três anos, seu padrasto perdeu o emprego, e então vieram as drogas

Quando ele tinha sete anos, a convivencias com as elas já era algo natural. Sua mãe sempre estava completamente pilhada, atendendo homens na porta o tempo todo. Ele morava em Madureira e seu maior sonho era ver o mar. Ricardo nunca era permetido sair da favela, muitas vezes inclusive, proibido de sair até da casa. Mas não havia outra vida pra ele. Como sentir vontade de algo que você nunca nem viu? 

Tudo o que ele tinha eram relatos, pessoas falando sobre a praia de Copacabana, o Cristo redentor e até o Pão de Açucar. Isso sim eram coisas que ele queria poder ver. Mas sair de casa para viver uma vida diferente, isso nunca lhe ocorreu

Já com seus 12 anos, ele começou a entender melhor o tráfico e como o morro funcionava. Apesar de ter literalmente nascido e crescido no meio de tudo aquilo, ele nunca sentiu vontade de se envolver, nem como vendedor, nem como consumidor. 

Na verdade naquela altura da vida, ele havia criado nojo de tudo aquilo. Quando perguntou para sua mãe o por que ela nunca usava nada do que vendia. Ela simplesmente respondeu que "o vendedor não se torna cliente". E aquela frase bastou para ele entender que mesmo estando enfiada no pior tipo de tráfico de drogas, ela nunca se tornaria um usuário. Mas seu padrasto se tornou 

Se tornou um drogado fudido, que voltava completamente insano para a casa e descontava nele. A mulher sempre o protegeu e o homem nunca a bateu diretamente, então as brigas acabavam sempre com ele se trancando no quarto e Ricardo dormindo junto com a mãe. Em meio ao caos que o padrasto criou, as dívidas começaram a aparecer. Sua mãe sempre controlou o dinheiro com um pulso firme e tinha todo o controle do que entrava e saia, então uma dívida de 10 mil reais foi realmente assustadora 

Apesar disso ela conseguiu tempo, implorou por uma chance, só precisava de tempo. Meses de trabalho, ela já tinha metade do dinheiro. Era só mais uma noite naquela casa tão estranha e agora desnivelada

Um homem bateu na porta, mais forte do que o necessário. A mulher foi em direção a ela, puxando a maçaneta. E tudo virou uma confusão. Tiros, gritos, briga, e sua mãe, o mandando fugi, ir o mais longe possível. Ele pulou a janela e então correu. Chegou tão longe que se perdeu, saiu pedindo ajuda para qualquer um e sendo completamente ignorado. O medo de passar a noite toda na rua, começar a passar fome, frio, a cada segundo consumia a sua mente.

Dentro de uma loja de bairro, um pequeno bar, ele encontrou abrigo, um rosto amigo e um agasalho confortável. Um homem mais velho, talvez uns 60 anos e com um sotaque nordestino carregado o acolheu, dizendo precisar de ajuda com o lugar. Em poucos meses ele havia se reerguido do ocorrido, transformado a dor em raiva, e começou a viver a vida com fogo nos olhos e malandragem nos pés. Andando nas ruas, crescendo e mudando. Aos 17, o homem que o abrigou morreu por uma doença. Foi como perder a família uma segunda vez, e ele só se perguntava "por que dessa vez parecia ter doido mais?" Ele deixou o lugar pra trás, pegando seu dinheiro e correndo pra onde queria. Se mudou para São Paulo aos 20, e foi onde sua vida mudou

"Milhares de pessoas num banheiro a padecer, você vai subir, você vai descer"

Em meio a vida da noite, baladas, bebidas, ele o achou. Um garoto tão bonito que fazia o local inteiro parecer patético. Cabelos negros, olhos escuros e um corpo tão exuberante que por um segundo ele achou que estivesse sonhando. Se lembrava exatamente da roupa que o outro vestia, sentado no bar, sendo bajulado por homens e mulheres mais velhos. Um casaco de pelos vermelho, um salto alto preto. No pescoço, brilhava uma gargantilha com um pingente de estrela. Aquela visão era atorduante

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