capítulo 2

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Os gritos foram tão altos que a recepcionista do hotel chamou a polícia. Meu pai
berrava que minha mãe havia me sequestrado e já na delegacia, quando contei que fui
por vontade própria e que a ideia de fugir era minha, fui olhada com muita surpresa pelo
delegado.
Uma assistente social foi chamada e muitas perguntas foram feitas. Não sei se as
minhas respostas foram as certas, mas consegui sair da delegacia com minha mãe.
Decidimos então que era melhor ir para a casa da vovó Cíntia de uma vez por todas.
Assim que paramos em frente a sua casa, um misto de felicidade e alívio me
invadiu. Era pequena e de aspecto antigo; no lugar do muro, havia uma cerca de ferro
que a rodeava por completo, muitas flores num jardim e um banquinho na varanda. Nas
paredes externas, pequenos azulejos com desenhos. Batemos na porta e ouvimos passos
dentro do imóvel. Uma senhora de cabelos cacheados e óculos abriu a porta e ficou um
tempo em silêncio até finalmente falar com a voz embargada.
— Não posso confiar tanto na minha visão, mas uma mãe não esquece o rosto da sua
única filha... Andressa, Minha Nossa Senhora! — Ali, no batente da porta, uma cena
que aquecia meu coração: mãe e filha que não se viam há sete anos se abraçando
profundamente — estou tremendo, olha — vovó mostrou suas mãos — mas pode ser só
a idade — ambas riem e minha mãe limpa as lágrimas.
— Oi, mãe — disse ela finalmente.

— Oi, vovó — joguei-me em seus braços e fui envolvida pela ternura que só vovó
Cíntia tinha. Seu cheiro de lavanda acertou em cheio minha memória afetiva; ali tinha
cara de lar.
— Mariana!
~
Acho que nem todo tempo do mundo seria suficiente para colocar todo papo em
dia, mas o principal ela já soube logo de cara. Havíamos fugido. Depois de muitas
perguntas e um rosto previamente preocupado, vovó nos levou ao antigo quarto de
minha mãe. Uma cama de solteiro com lençóis florais e ursinhos de pelúcia ficava no
canto perto da janela. Uma mesinha de estudos com alguns livros perfeitamente
arrumados e um pôster da Shakira na parede.
— Não sabia que você era fã da Shakira, mãe — comentei rindo e sentando em sua
cama.
— Ah, ela era! — Falou minha avó rindo — olha só — ela abriu o guarda-roupa atrás
de si e pegou um álbum de fotos — ela gostava de usar roupas parecida com as dela —
Na foto, minha mãe vestia uma roupa que lembrava a de dançarinas de dança do ventre;
aparentava ter uns vinte anos, talvez menos.
— Seu pai não gostava muito que eu usasse essas roupas, então as vendi para um brechó
— comentou tristemente enquanto abria as malas para colocar as roupas em seu antigo
armário.
— Aquele homem não gosta de muitas coisas — Falou minha avó revirando os olhos.
No mesmo instante, vi minha mãe olhá-la em um misto de tristeza e vergonha —
fiquem à vontade, vou preparar algo para vocês comerem! — Acho que preparar comida
é a forma de vovó Cíntia de mostrar amor. Ela deu um beijo em minha cabeça e saiu.
Observei minha mãe caminhando pelo quarto. Pegando seus cadernos, suas
roupas, olhando cada coisa como se fosse um tesouro valioso. Apanhei um de seus
ursinhos e o abracei. Era uma girafa bonitinha, ―fique com os ursinhos para você,
querida. Eles me fizeram companhia aqui nesse quarto‖. Abri espaço entre os outros
bichinhos e me deitei. Fechei meus olhos e respirei fundo. Pouco a pouco, o teto ficou desfocado, e tentei me acalmar. Quando pensei que ia começar e ansiosa sobre o que
iríamos fazer, meu corpo se encarregou do resto e então adormeci.

— Nossa vovó, que cheiro ótimo! — Falei, sentando à mesa da cozinha.
— São as empadinhas no forno, meu amor, estão quase prontas! — Reparei que seu
avental estava sujo de farinha e um sorriso não saia de seus lábios.
— Eu amava levá-las para o colégio. Minhas amigas brigavam entre si para saber quem
ficaria com a última — Disse mamãe rindo.
Quando cheguei à cozinha, encontrei-as tomando café e falando baixinho. Era
isso que eu amava na casa da Vó Cíntia: a quietude. A vizinhança quase toda era idosa e
eu amava. Pode parecer estranho, mas eu gostava de calmaria. Caio brincava dizendo
que eu era uma adolescente de alma velha.
— Querida, podemos falar rapidinho? — Perguntou vovó à minha mãe e ela assentiu,
saindo para o quintal pela porta que dava aos fundos da casa.
Aquela cozinha estava do jeito que eu me lembrava há sete anos: móveis
antigos, perfeitamente limpa e sempre com algo assando no forno. Pães, bolos,
salgados. Senti meu estômago roncar e abaixei para ver as empadinhas ganharem uma
cor levemente tostada na parte de cima e percebi que minha boca estava se enchendo de
água.
— Mãe, é sério, vamos ficar bem, Só precisamos de um lugar para ficar. — Falou
minha mãe voltando para a cozinha.
— Vocês podem ficar aqui o tempo que quiserem, meu bem. — Vovó abriu um lindo
sorriso e olhou para mim — Mariana, quer me ajudar a tirar as empadinhas das
forminhas? — Assenti, devolvendo o sorriso.

Ela me ensinou que deveria esperar que esfriassem um pouco para então tirá-las
das forminhas de alumínio. Com calma, tiramos uma por uma e colocamos num prato
bonito de porcelana com alguns desenhos.
— Aqui estão, espero que estejam com fome — Falou ela servindo café para nós.
Sentamo-nos à mesa. – Acho que tenho um colchão extra no meu depósito ali nos
fundos, Andressa. Pode usar. Melhor deixar a Mari em seu quarto; ela adorava brincar
lá quando era criança, lembra-se? – Perguntou enquanto bebericava um pouco de café
que ainda soltava fumaça.
— Ah, se me lembro! Aliás, ela amava vir aqui. A senhora sempre a empanturrava de
boa comida — Minha vó riu; vejo que isso a deixa orgulhosa. Começamos a comer as
empadinhas e fiquei paralisada.
A massa desmanchando na boca, o sal na medida certa. A mistura entre o
recheio e o resto resultando na melhor empada que já provei na vida. Minha mãe olhou
para mim, com certeza partilhando da mesma sensação.
— Sabe, Mari, acho que tive uma ideia — falou tapando a boca que ainda estava cheia.
Tudo aconteceu rápido demais; o nome veio instantaneamente: Empadinhas da
Vovó Cíntia. Perfil no Instagram criado e nós três indo ao supermercado comprar os
ingredientes para começar a venda. Acho engraçado como as coisas funcionam. A
preocupação que tomava conta de minha mente há poucas horas foi substituída por uma
onda de positividade e alegria. E isso era muito bom.

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