capítulo 4

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Acordei com quatro ligações perdidas. Três do meu pai e uma de Caio. A casa
estava silenciosa e havia diversas fotos na mesa de centro da sala. Aparentemente
estavam conversando sobre o passado enquanto eu dormia.
Sentei-me no sofá e olhei cada foto com atenção. Ali havia uma Vó Cíntia mais
jovem, com seus cabelos afro e seu rosto perfeitamente emoldurado. Ela estava sentada
em um gramado com outras duas mulheres no que parecia ser um protesto. As outras
fotos a mostravam grávida, minha mãe se formando no colégio e um garoto de uns três
anos. Acho que era meu tio Fábio, falecido quando criança.
Olhando distraída para as fotos, encontrei uma que me chamou a atenção: a
família reunida ao redor de uma ceia de natal. Todos sorrindo para a câmera, exceto
meu pai, que nem tocava ninguém, nem sorria. Ao fundo, uma árvore impecavelmente decorada com luzes. Olho atrás da fotografia e vejo a data: ―25/12/2009‖. Aquela foto.
Aquele natal...
— Ah, Mari! Você acordou — Vovó entrou de repente e me levantei depressa,
escondendo a foto atrás de mim, sem saber a razão de ter feito aquilo
— poderia me
ajudar a tirar umas ervas daninhas que estão crescendo no jardim dos fundos?
— Claro! Só preciso escovar os dentes. — Saí o mais rápido possível e entrei no quarto.
Mesmo sem olhar para o rosto de Vovó, sei que ela achou esquisito.
Meu telefone começou a vibrar debaixo do travesseiro, tocando a música Black
Magic do Little Mix. Caio mais uma vez tentando falar comigo
―Oi‖
―Finalmente! Você tá bem?‖
Eu estava bem? Não saberia dizer. Muita coisa passava pela minha cabeça
naquele momento; não saberia dizer com precisão se estava bem.
―Eu acho que sim. Olha, me encontra na Biblioteca Nacional hoje depois do almoço?‖
―Ok‖

— Você adora essas cadeiras, né? — Perguntou Caio se aproximando.
— Sim. — Respondi ainda de olhos fechados, com o corpo tremendo graças à
massagem que a poltrona proporcionava
Além dos livros, é claro, o que mais me atrai na Biblioteca Nacional são aquelas
poltronas. Elas ficavam em frente a um painel de vidro, através dos quais dava para ver
o eixo monumental da cidade.
Podia-se ver o museu e a catedral, ambos pintados de branco. O sol, mais
brilhante do que nunca, parecia tornar ainda mais resplandecente a cor daqueles prédios.
— Vem, vamos ao shopping tomar sorvete. Soube que uma nova sorveteria abriu, uma
com sorvete na chapa gelada, parece interessante.
— Ok — falei levantando e encaixando meu braço no de Caio.
As combinações de sorvete eram infinitas; podia-se combinar com tantas frutas e
doces que me perdi e fui no básico: morango com chocolate, Caio se arriscou um pouco
mais e adicionou manga ao dele. Uma fruta de que eu não gostava tanto.
— Então, agora estão na casa da sua avó? — Ele perguntou enquanto procurávamos um
lugar para sentar.
— Sim, acho que vamos ficar lá por enquanto.
— Não sabia que tinha uma avó.
— Nem eu — ele olhou para mim confuso — Bem, eu sabia que ela estava viva, mas
há anos não tínhamos contato. Era como se ela não existisse mais.
— Entendi.
— Por que o Matheus não veio? É estranho tomar sorvete sem ele por perto para
reclamar que é um doce ruim.
— Caio deu de ombros — Ah, não, de novo?
— Dessa vez não fui eu que comecei. — Disse Caio num tom agudo — ele é um idiota.
— Por que brigaram dessa vez?
Caio desabafou sobre seu relacionamento de maneira breve. Eles viviam
terminando e voltando, cada vez mais frequentemente. Era o casal mais doido que eu
conhecia; quer dizer, tirando os meus pais.
— Mas eu não quero falar de mim. Quero saber como vocês estão.
— Ah, vovó tem sido incrível. A casa dela é muito confortável; só precisa de internet e
ficará perfeita — declarei no final, com uma pontada de saudade de casa, do meu
quarto, das minhas coisas, dos livros que deixei para trás e não fazia ideia de quando os
teria novamente.
Instalou-se entre nós um silêncio confortável que só se adquire quando a
amizade é verdadeira e espontânea. Ali, saboreando meu sorvete, uma garotinha ao
longe chamou minha atenção. Ela estava acompanhada de um homem que deduzi ser seu pai. Ele a segurava por uma mão e carregava o celular na outra. Ela o olhava com
um sorriso nos lábios, alternando-se entre isso e o milk-shake que tomava devagar.
Pareciam felizes.
— Mari?
— Oi. — Respondi, ainda distraída. Ele olhou para onde eu olhava.
— Ah, amiga. — Ele passou um de seus braços sobre meus ombros e recostou a cabeça
em mim. Naquele momento, eu não poderia ser mais grata a sua amizade.

Uma semana se passou. De acordo com minha avó, aquela casa nunca estivera
tão animada. Encomendas de empadinhas chegavam a todo instante: para festas de
aniversário, cafés da manhã, reuniões de todos os cantos da cidade.
Ela nos ensinou passo a passo de sua receita ultrassecreta. Aos poucos, minha
rotina voltava ao normal, até no que dizia respeito aos estudos. Numa tarde de sábado,
distraída no quarto, minha mãe interrompeu meus pensamentos que vagavam de
Machado de Assis à termodinâmica para me dar uma notícia.
— Oi, meu amor, atrapalho? — Perguntou sorrindo e fechando a porta atrás de si.
Acenei com a cabeça sinalizando que não — querida, eu estive pensando... — Falou
pausadamente, sentando-se na cama e me chamando para sentar ao seu lado
— sobre o
que sua avó disse aquele dia, sobre eu correr atrás dos meus sonhos...
Ela parecia apreensiva, como eu ficava quando ia lhe pedir algo já negado por
ela antes.
— Sabe, Mari, quando eu era pequena, eu ganhei um capacete amarelo, daqueles de
construção, sabe? — Acenei, concordando. Eu já tinha usado algumas vezes — Ali
surgiu minha vontade de ser engenheira. Meu amor, o que vou lhe dizer agora pode te chocar um pouco e vou entender se você não concordar... Eu quero fazer o vestibular,
quero tentar novamente.
Em parte, parecia um pedido de permissão, mas sei os motivos que a levaram a
pensar daquela forma.
— Sério? — Questionei espantada — mãe, isso é incrível. Para qual universidade?
— A UnB.
Era a mesma para qual eu iria prestar.


―Não parece ruim‖
―Ah, não? Quantas pessoas na faculdade você conhece que estudam com um dos pais?‖
―Amiga, não conhecemos tantas pessoas assim que já estão na faculdade‖
―De que lado você está? Kkkk‖
―Do seu, mas você está mesmo chateada com isso?‖
Eu não estava, não a ponto de discordar e fazer um chilique. Saber que minha
mãe finalmente teve coragem de realizar esse sonho era incrível. Mas algo dentro de
mim dizia que seria um desafio. Peguei o telefone pronta para responder Caio, mas ouvi
a voz de vovó me chamando do quintal nos fundos.
— Mariana, você prometeu me ajudar a tirar as ervas daninhas! Vem cá, menina.
Encontrei vovó Cíntia com terra até os joelhos e uma tesoura de jardinagem em
uma das mãos. Seu quintal dos fundos era ainda mais bonito que o da frente da casa, se
é que isso era possível. Uma mesa de ferro ficava debaixo de um pé de laranja que ainda
não havia frutificado. Plantas de várias espécies por todos os lados; aqui e ali, voava
uma borboleta. Sua casa era uma figura fora do contexto da capital Brasileira moderna,
parecia uma dessas casas de pintura que ficava à beira de uma estrada. Havia tantas
construções novas ao redor que aquela casa ganhava um aspecto original que
representava bem Vovó Cíntia.
— Como posso ajudar? — Perguntei me aproximando e percebendo que não sabia
diferenciar as ervas daninhas das demais plantas.
— Aqui, querida — ela retirou do solo uma plantinha pequena e me mostrou — veja,
tem muitas dessas, está vendo? — Assenti — Tem que arrancar com as mãos. Elas têm
se disseminado rapidamente por aqui.
— E por que temos que tirá-las? Não parecem ser perigosas.
— Aí que mora o perigo — falou calmamente — por não parecerem perigosas, não
tiramos, mas elas adoecem as plantas que estão tentando crescer. Se eu quiser cultivar
uma horta aqui, preciso que o solo fique livre delas. Este ano quero plantar tomates.

Disse dando uma piscadinha.
Trabalhamos em silêncio, até me surgir a ideia de compartilhar a nova ideia de
minha mãe, que naquele momento havia ido à papelaria mais próxima comprar material
escolar e providenciar a internet para casa de Vovó.
— Vovó?
— Hum — ela respondeu, estava totalmente focada.
— A senhora acha estranho a mamãe estudar comigo?
Ela parou o que estava fazendo e olhou para mim. Achei que fosse brigar
comigo e dizer coisas do tipo
―ela te trouxe para esse mundo, acho que isso é o mínimo
que você pode fazer por ela‖.
— Um pouco — ela respondeu baixinho, dando de ombros — uma mãe sempre quer o
melhor para seu filho, então estou feliz por ela tomar essa decisão. Entenda, Mari, sua
mãe está sendo movida agora pelo sentimento de liberdade que não sentia há muito
tempo — ela suspirou e passou a mão na testa suada — sei que vocês duas vão chegar a
um acordo — dizendo isso, levantou-se — vou fazer o almoço. — Vovó saiu e me
deixou ali, pensativa. De joelhos na terra úmida, imaginei-me na sala de aula com
minha mãe ao meu lado. Uma preocupação se instalou em meu peito e tentei arrancá-la
da mesma forma que arrancava as pequenas ervas do jardim.






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⏰ Última atualização: Sep 15, 2023 ⏰

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