capitulo dois - arrogância;

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Andou pelos corredores arrastado pela má vontade e preguiça de ter que arrumar suas coisas, justo aquele horário que poderia estar dormindo tranquilamente em sua caminha. Seria a última vez na vida que andaria por aquela casa, e se algum dia tivesse que passar pelo caminho angustiante de paredes vermelhas e quadros do seu pai novamente, cortaria os pulsos na banheira e passaria a amaldiçoá-lo como espírito. Irritado por conta dos próprios pensamentos intrusivos, abriu o whisky que estava lacrado com uma certa grosseria e passou a bebê-lo como se fosse água, descontando suas mágoas e frustrações na bebida que descia amargamente por sua garganta.
Entrou no próprio quarto batendo a porta na parede propositalmente, notou que estava tudo tão... diferente. Os funcionários já haviam retirado tudo de lá, suas malas estavam em cima da cama com tudo que lhe pertencia ali guardado. Sem contar as caixas que estavam sobrepostas em sua escrivaninha. Seu pai estava com tanta pressa de vê-lo longe dali, que já adiantou o processo, não tinha mais nada seu ali, até as estrelas do teto haviam sido arrancadas, seus pôsteres de infância, a pichação atrás da porta estava coberta, o papel de parede que um dia fora azul voltou para a coloração de antes... Branco, vazio, sem sentido algum como sua família. Passou a mão por seus cabelos, puxando sua franja levemente, uma falha tentativa de descontar toda a raiva que sentia de toda aquela situação.
Ainda com a garrafa de whisky na mão, entrou no banheiro de seu quarto trancando a porta logo em seguida e encarou-se no espelho, vendo o quão repugnante era. Num reflexo misturado de espanto e raiva, fechou os punhos pensando seriamente em arrebentar aquele que estava diante de seus olhos, porém sabia que nada adiantaria destruir a si próprio. Vagou os olhos pela bancada extensa da pia do banheiro procurando por algo, até que fixou-se em uma tesoura que estava ali esperando para que fizesse alguma baboseira.
Olhou-se uma última vez no espelho. Seu olhar marcante de íris consideradas raras não só pela humanidade, mas pela ciência. A cor dos olhos é definida pela genética, resultado da interação entre vários pares de genes. Esse fenômeno é chamado de Herança Poligênica. Todavia, não conhecia nenhum parente próximo com essas cores, a mistura predominante de azul, lilás e mel que se misturavam uma nas outras trazendo para si a tão marcante característica que fazia a todos lhe invejar, olhos de arco-íris assim dizer. Dedilhou pelo cabelo naturalmente grisalho, longo ao ponto de quase ultrapassar sua bunda, a tonalidade também rara, um loiro tão claro que parecia branco; extremamente macio e hidratado, apenas de mexer levemente já fazia o cheiro de ameixas de seu shampoo invadir suas narinas. Mas do que adiantava aquela aparência quase angelical que não combinava nem um pouco com sua personalidade, sua arrogância, sua indelicadeza, rispidez nas palavras, atitudes sujas.
Com as mãos trêmulas pegou a tesoura do balcão, encarou pela última vez seu reflexo no espelho, fechando os olhos fortemente. Colocou o longo cabelo para o lado e passou a cortá-lo de maneira desleixada e torta. Sentia os longos fios caírem sobre seus pés, não ligava mais para a própria aparência, não ligava para mais nada. Lentamente abriu os olhos vendo que havia retirado todo comprimento daquilo que cuidou por tantos anos. Para não se sentir pior, ajeitou o corte deixando repicado atrás, com uma franja longa que batia um pouco abaixo dos olhos. Procurou pelo seu armário, abrindo todas as gavetas até chegar a última encontrando o que tanto procurava, viu que sua máquina ainda estava ali. Não era um corte feio, era um pouco semelhante com a das celebridades e animações japonesas. Deu uma última aparada no cabelo raspando no número dois a parte de trás e um pouco dos lados, nada muito exagerado, apenas para não ficar as marcas de corte. A franja caída pelos seus olhos, os resquícios de cabelo espalhado pela pia e pelo chão, havia se destruído por completo.

...

Passou-se longos minutos, porém finalmente teve coragem de sair do banheiro. A garrafa já estava vazia, lhe restava apenas pegas as outras duas garrafas de vinho que havia deixado sobre sua cama. Abriu a porta delicadamente, deu-se logo de cara com sua mãe sentada em sua cama esperando que saísse. Estava com um semblante cabisbaixa, mas ao ver o filho sair do banheiro, um sorriso confuso surgiu em seu lindo rosto.

i'm not a angelOnde histórias criam vida. Descubra agora