Capítulo 02 | Sociedade Wolf

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Era ela, uma efígie concreta de um tempo que ele preferiria manter sepultado sob uma montanha de esquecimento. Como um rio, as memórias fluíam e se manifestavam, moldando-se cada vez mais em carne, osso e amargura.

— Preciso que você me acompanhe, Brim — dizia com a voz cortante e mecânica, seus olhos verdes cintilando veneno d'alma.

Ao fundo, estacionado em frente à sua casa, estava um esportivo noventista, preto e fosco. Sabine, à sua frente. Seus olhos esmeralda adornados por profundas e arroxeadas olheiras, evidenciavam sua falta de sono, realçando uma compleição consumida pelo cansaço.

Brimstone a seguiu e entrou no carro sem demora, observando a fachada de sua casa se iluminando pelo sol daquela manhã. Ao lado dele, Sabine estava no volante.

Os dois encontravam-se em completo silêncio, e, sua "visita" não estava disposta a quebrá-lo. Sua respiração era inaudível, parecendo mais uma morta-viva do que a mulher que um dia conheceu.

— Por que você está aqui, Sabine?

A doutora ignorou a pergunta, engatando outra marcha acelerando o carro pela estreita rua à frente, deixando para trás o antigo bairro lotado de casas conjugadas. O veículo era uma raridade em tempos modernos, onde robôs normalmente assumiam o controle da direção.

— A Kingdom... Você assistiu à televisão, Liam? — indagou em quase sussurro, mantendo o olhar fixo diante do para-brisa.

— Não tenho visto televisão. Só abro exceções quando os Orioles vão jogar.

Sabine permaneceu quieta e impassível, enquanto Brimstone a observava dirigindo.

— Como tem sido?

— Desde o Mecom? Uma completa merda — disse Liam, estendendo o braço direito sobre a perna — Ainda sobrou um punhado de dinheiro da K/SEC, mas logo não vai ter muito mais de onde tirar. E você? Parece cansada.

— É... Bem percebido — ela murmurou, sua expressão refletindo uma mistura de paranoia e desespero. — A Kingdom brinca conosco, não é? Primeiro eles roubam quem nos importa, depois nossa identidade, e, no fim das contas, a própria vida. Mas, veja bem, eles ainda não conseguiram me arrancar a vida.

Liam sorriu. Lançando um sorriso que carregava uma melancolia irônica.

— Em Seattle, ainda neva? — perguntou o velho sargento.

— Sem parar...

O silêncio se arrastou, uma pausa carregada de desconforto. Os dois pareciam deslocados, como se não quisessem estar ali naquele momento, mas estavam; inevitavelmente.

— Os pesadelos, você conseguiu acabar com eles? — perguntou Sabine, permanecendo sem olhar para o colega.

— Não. Quase sempre eles voltam, mesmo eu aumentando mais e mais a dose dos soníferos — suspirou, retraindo os braços para perto do torço, sentido seu coração bater, lento, lento demais. — Sabine, seja franca. Por que você saiu de Seattle e veio para Baltimore? Você não é o tipo de pessoa que vai ver seu ex-colega depois de três anos como quem diz: "oi, lembra de mim, vamos sair para tomar uma xícara de café". O que você quer comigo?

Imediatamente após pronunciar as suas palavras o carro parou em um sinaleiro numa avenida principal da cidade. Os enormes prédios circundavam os dois pequenos seres no barco-a-deriva de metal e plástico. Estava claro pelo sol matinal e mesmo assim, as grandes luzes tom neon invadiam suas córneas com propagandas infindáveis e indesejáveis. Um refrigerante num dos outdoors embriagava os sentidos com o logo da Kingdom Cola. Uma xícara de café, bebericada por uma modelo internacional num dos painéis luminosos era a prova de que a beleza e requinte estavam na KCoffee. Dentre os becos enlameados de sacolas plásticas e ratos, os drones preto e brancos da K/SEC serpenteavam entre pulsões de ar quente dos bueiros da cidade, ressoando de modo cálido o frio daquele dia.

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