02. Para sempre? Talvez

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AGORA

Nosso casamento não desabou. Não quebrou rapidamente com uma só martelada.

Pelo contrário, caminhamos muito. Nós duas caminhamos tanto, mas eu fui em sentido oposto a Simone. 

Foi tão bom começar, nós começamos tão bem. Mais otimistas que a maioria dos casais. Tão tão apaixonadas. Entretanto, nós nos perdemos. Nesse caminho, nós íamos juntas, mas em algum desvio entrou em descompasso a nossa habilidade de andar em sintonia.

O mais maçante é que nenhuma de nós consegue deixar ir. Somos mais habilidosas ainda em fingir que nada mudou, que tudo continua igual, nós ainda fingimos dançar, mesmo estando claro que é impossível dançar no silêncio.

Quando foi estipulado que um casamento acaba quando o amor chega ao fim? Eu e Simone ainda nos amamos. Eu ainda vou responder que Simone Tebet foi o amor da minha vida caso me perguntem em um futuro não tão próximo. 

Porque Simone não me deixa dúvidas, nem quando está tão perto de ir embora. 

Mas já faz tanto tempo que deixamos de dançar juntas que não lembro o grande brilho dos seus olhos quando ela está sobre mim. Faz tanto tempo, que ela com certeza consegue dizer todas as pintinhas que tenho na nuca após as várias vezes que eu lhe dei as costas depois de fazer amor, porque sempre sinto que isso não vai durar.

Talvez eu possa dizer que essa constatação vem da autossabotagem que eu me proponho a cada dia. 

Repouso o olhar na minha aliança e lembro do dia em que nós duas saímos rápido para comprar. O joalheiro nos disse que a aliança é como o amor, é infinita. E só hoje percebo que ele em nenhum momento citou que a felicidade, assim como a aliança, também não teria um fim. Ela tem. E temo que esteja tão próximo.

Com uma mão rodo a aliança no dedo e na outra seguro a caixinha de madeira, quando Simone aparece na porta do quarto e questiona:

— O que você está fazendo So?

Olho para ela recostada na lateral da porta. Certamente acabou de chegar do trabalho. Já retirou o terninho que lhe cai tão bem, seus pés já não estão calçados nos saltos que ela costuma usar e o elástico que minha esposa sempre carrega, agora prende os fios negros em um rabo de cavalo. O espanto ao ver a caixa na minha mão faz com que uma careta fofa apareça no seu rosto enquanto ela procura meus olhos. 

A única presença de Simone preenche e transborda em todo o quarto. E entre sobras e sobras eu ainda consigo faltar para ela.  

Nem tive tempo de esconder a caixa de madeira antes de Simone chegar. Desci ao sótão para buscar meu vestido de noiva e ver se ainda cabia no meu corpo. Eu precisava verificar se algo em mim ainda seguia igual. Sim, ainda serve. 

A caixa também estava lá. Intocável. 

Simone se aproxima de mim. Seu semblante carrega tanto medo. Seu olhar alterna entre mim e a caixa de madeira, esperando que da minha boca saia alguma justificativa. Ela agacha ao meu lado, sua mão tão clara toca meu joelho e a outra faz movimentos carinhosos nas minhas costas. 

— So?

A sua voz sai tão trêmula. Consigo ouvir todos os seus temores e medos apenas nas duas letras que formam meu apelido carinhoso. Seus olhos parecem tão inseguros. Seus olhos agora parecem sempre tão preocupados. 

Não sei em que estágio do nosso casamento Simone passou a me olhar assim, tão aflita. Simone me olhava com tanto entusiasmo e diversão.

E também não sei quando deixei de lhe contar tudo, para transforma-me nessa mulher que deixa as palavras descerem garganta abaixo, quase causando sufocamento.

— Desci no sótão e achei ela lá.

Eu amava quando em algumas manhãs acordava e me deparava com minha esposa me olhando. Quando eu a questionava o porque de estar me fitando assim ela respondia que o tempo em que eu dormi ela perdeu muitas coisas incríveis sobre mim. Minha Si sorria ao colar sua testa na minha e sussurrar tão baixo e tão íntimo "Soraya Thronicke, o que eu perdi enquanto você dormia?". Então eu me encaixava melhor entre seus braços e passava a contar sobre meus sonhos com borboletas gigantes, formigas assassinas e carros voadores. Simone sempre deixava lágrimas escaparem pela intensidade da sua risada e depois me fazia acreditar que acordar ao meu lado era tão incrível quanto ver as estrelas dançando ao redor da lua.  

Ela não me pergunta mais o que perdeu enquanto eu dormia. Talvez porque meus sonhos já não soam tão interessantes para ela. Eu também não falo mais tudo que sinto, talvez por não me sentir tão mais interessante para ela.

Não percebo que continuo mexendo na aliança até Simone colocar a mão sobre a minha e parar meus movimentos. Lentamente ela retira a caixinha da minha mão e a deixa em cima da cama. Tão naturalmente entrelaça seus dedos aos meus, levanta meu rosto e se aproxima ainda mais para depositar um beijo na minha testa. Esse beijo que vai descendo pelo meu rosto até encontrar meu ombro. Sua mão que até então acariciava as minhas costas, passeia em direção a minha nuca e seus lábios agora já estão tão próximos aos meus. Ela roça nossos narizes e sua voz sai tão rouca quando as palavras "Eu te amo, So" são proferidas. 

Então nos beijamos. É tão estranho sentir tanta saudades de quem ainda está aqui. Tão estranho querer fazer amor com quem ainda, as vezes, faço sexo.

Simone me deita na cama delicadamente, como se um mínimo passo equivocado seu me fizesse recuar. Seus lábios e os meus sabem se conectar tão bem. Seus dedos me tocam inteira. Suspiramos juntas no segundo que as nossas línguas se acariciam.

Ela procura a barra da minha blusa e por instinto levanto os braços para facilitar a retirada da mesma. Seus beijos úmidos deixam marcas no meu pescoço. Posteriormente, o vale entre os meus seios são preenchidos com todo o amor que ainda existe em Simone. Nossos dedos são novamente entrelaçados e, por muito que aperto suas mãos, me custa acreditar que ela ainda não se foi, não desistiu de nós. 

Ela então desce para beijar cada pedacinho da minha barriga. Seus lábios passeiam por ela inteira. Olho para baixo e vejo meu abdômen tão retinho, que cabe perfeitamente no meu vestido de noiva, mas que nunca esticou-se perfeitamente para ser a meia lua que forma a casa de um bebê.

Minha esposa sabe me decifrar inteira. Certamente conseguiu sentir meu corpo tensionar sob ela. Simone fitou-me nos olhos e foi inevitável impedir que a minha visão nublasse pelas lágrimas que ameaçavam apontar.

Ela sentou-se na cama e me puxou para seu abraço casa. Pressionou-me contra seu corpo, fazendo com que eu escutasse todas as ondas sonoras que saíam do seu peito cheio de carinho por mim.

— Você abriria So?

Simone nunca gostou de fazer perguntas para as situações que não queria receber uma resposta negativa. 

— Abriria aquela caixa?

Pela primeira vez ela me perguntou algo com seriedade e clareza. Eu, já muito experiente em calar, dei de ombros, engolindo mais um vez as palavras que ameaçavam romper em choro.

Ela me aperta mais entre seus braços. Eu não retribuo. Ela levanta e sai do quarto. Eu entro no banheiro e choro ao passo que a água abafa os soluços.

Depois vou sair do banheiro

Simone fingirá não saber o que eu fazia trancada por horas dentro do banheiro e perguntará "Por que seus banhos são sempre tão demorados, So?"

Eu fingirei melhor ainda e responderei que banhos demorados são mais relaxantes e fazem bem para manter a saúde da pele.

Ela fingirá uma risada e me deixará trocar de roupa sozinha no quarto.

Eu me olharei no espelho, analisarei meu corpo e, como sempre, constatarei que sou excepcional fisicamente: tenho quadris largos, barriga chapada, seios redondos e uma bunda que é facilmente notada. 

Repousarei minhas mãos no meu ventre e novamente me permitirei chorar o luto. Lembrarei de todas as vezes que vi o sangue descer pela minha perna, enquanto eu escorregava pelo box do banheiro, vendo o meu sonho outra vez descer pelo ralo, literalmente. 

Essa é nossa rotina desde as cinco tentativas frustradas de ter um bebê. 

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Com amor, Simone.Onde histórias criam vida. Descubra agora