Capítulo 4: outubro

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Tenho algumas lembranças memoráveis da minha adolescência. Quase todas envolvem amiudamente as mesmas pessoas. Meus pais, Osamu e meus colegas de time. Nunca tive muitos amigos. Algumas dessas reminiscências, entretanto, me fazem pensar se não foram criações e peças pregadas pela minha própria mente.

Eu não costumava passar todos os intervalos das aulas com o time de vôlei ou com meu irmão. Nem sempre estava disposto a ouvir suas discussões acaloradas que integravam temas sobre garotas, animes e faculdade. Muito menos me sentia à vontade para conversar, como já deve ser de se imaginar. Então, eu comia em cinco minutos, ou simplesmente não comia, e fugia para o pátio.

Aquele deveria ser o pátio escolar mais feio de toda Tokyo. Eu nunca entrei em muitas escolas de ensino médio, mas não era necessário que o fizesse para ter certeza de minha afirmação. A terra batida era escura como barro, e os períodos de chuvas fortes tornavam-na ainda mais irregular. As grades que cercavam o espaço assemelhavam-se às grades de uma prisão de baixa segurança. O ferro de mais de vinte anos estava enferrujado e cheio de pontas soltas e poderia causar tétano.

Eu corria em volta do pátio ou fazia flexões para me movimentar. Quando não queria correr, eu me sentava abaixo de uma das poucas árvores nuas que havia ali. Nos dias que não cochilava, ficava olhando a escola, ainda mais feia que aquele pátio. Minha mãe me fazia esfregar meus uniformes todas as noites. 

Era um lugar vazio, já que a maioria dos alunos ficava no refeitório. Poucos, entretanto, aproveitavam o horário fora da supervisão de adultos para beber escondido ou darem beijos. Não é porque estávamos na década de 70 que os adolescentes não faziam coisas como os de hoje em dia, ainda mais em uma escola como a nossa.

Em um desses dias de fuga, eu caminhava para fora do refeitório sentido o pátio. Era outono de 78, uma das estações que mais escondia a feiura de Gouru. As muitas folhas em tons terrosos escondiam um pouco da terra batida e davam uma aparência de preenchimento do vazio daqueles caminhos. 

Alguns alunos, contudo, costumavam tropeçar diariamente, já que as folhas escondiam os buracos no chão.

Foi quando os vi, os dois garotos, escondidos atrás de uma enorme lata de lixo vazia, próximos à sala de manutenção. Não sei porque, até hoje, eu parei para observá-los. Não me preocupei, nem mesmo, em tentar me esconder, embora a distância entre nós não fosse tanta. Apenas fiquei estagnado, ali, no meio do caminho para o pátio, como esperando que algo acontecesse.

Eles pareciam acanhados. As mãos se mexiam nervosas. Os sorrisos eram tímidos e não saíam dos rostos. Os olhares, contudo, carregavam a mais pura felicidade e ansiedade. Um deles, o mais baixo, estava escorado na parede e o outro estava de frente para ele. Este, cuja face eu não podia ver, levou a mão esquerda ao rosto do garoto encostado na parede, que sorriu ainda mais. 

Ele o puxou pela manga da camisa, e foi então que aconteceu. Os dois se beijaram e eu sei que podia sentir a doçura daquele toque em meu coração.

Teria ficado mais tempo, apenas os olhando, mas decidi me mover para longe dali. Meus passos eram lentos, contudo. Eu deveria ter saído de lá antes, eu sei. Mas, no fundo, eu gostaria de ter poder ter ficado ali, apenas observando.

Eu só não entendo como Kageyama e Hinata não me viram naquele dia. Ou se simplesmente decidiram fingir que eu não estava lá. Acho que foi a segunda opção, mas nunca saberei, pois nunca entramos nesse assunto. Hinata não mora mais no Japão e Kageyama nunca se casou.

Talvez eu devesse ter aprendido algo com esse acontecimento, mas a verdade é que eu não aprendi. Ele apenas ficou guardado em minha mente e eu nunca esquecerei.

Até porque, neste mesmo dia, decidi mudar um pouco minha rotina com Kita.

Era a segunda semana de outubro e ele parecia um pouco para baixo havia dois dias, após eu flagrá-lo em uma conversa séria com seu primo, Ushijima, no escritório. Antes que eu pudesse ouvir muito, ele me viu e mandou o primo embora.

Eu não sabia o que fazer, mas não podia deixá-lo permanecer daquela maneira. Então, me senti livre para mudar nossa programação. Queria vê-lo sorrir de novo.

Naquela tarde, Shin me olhou curioso quando eu atravessei as imensas portas de madeira da grande casa com uma bola de vôlei. "Hoje eu quem decido nossa programação, então fica na sua e me obedece", falei, com o nariz empinado e mais ansioso que o normal. Não precisei dizer mais nada. Ele sorriu grande e logo subiu para se trocar e, assim que desceu vestindo roupas casuais de esporte, fomos ao seu quintal, coberto pelas folhas outonais. 

Depois da nossa tarde jogando, mudei minha percepção sobre as habilidades artísticas de Kita. Ele definitivamente não pintava tão mal quanto jogava vôlei, mesmo com um professor tão bom quanto eu. Ele conseguia ser ainda pior, mas, se ele não se importava, eu me importava muito menos. Ele ria a cada vez que não recepcionava a bola direito. Sorria quando escorregava e caía no gramado. 

Mesmo quando o suor escorria e entrava em seus olhos, Shin o limpava e se posicionava para mais uma partida.

Paramos quando faltava uma hora para dar meu horário. Nos jogamos no chão, lado a lado, e ficamos olhando para o céu que escurecia enquanto descansávamos da tarde nada pacata. Kita inspirava e expirava fortemente, estava muito mais cansado que eu.

Eu me preocupei quando se passaram quase dez minutos e ele continuava ofegante.

— Cê tá bem, Shin?

Seu peito parou de se mover por alguns segundos. Kita, então, virou o rosto para mim. Ele sorria como ainda não havia feito aquela semana. Seus olhos estavam quase fechados, o sorriso enorme poderia rasgar seu rosto. Aquele nariz arrebitado.

— Eu não poderia estar me sentindo mais vivo, Tsu.

E eu sorri de volta.

Aquela era uma sexta-feira. Na semana seguinte, quando fui para sua casa na segunda-feira, Kita me aguardava no sofá da sala da entrada com uma bola de vôlei e joelheiras novas. A partir daí, jogávamos duas vezes por semana. Ele nunca mais ficou triste perto de mim.


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Com carinho, Rony.

o tempo que (não) tivemos | atsukitaOnde histórias criam vida. Descubra agora