Capítulo 20

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Quarta Feira...

Os primeiros raios de sol entregaram uma tonalidade alaranjada bem clara, bem fraquinha pra os cômodos da casa e no final da escada estava Anderson ainda estático. Calcinado no corredor com o olhar vazio e a mão estendida. San Manche foi devidamente paga e os quatro que tiveram um encontro com ela nunca mais serão os mesmos.

Um fenômeno aconteceu na casa vazia. O pentagrama invertido da sua mão ainda sangrava e o líquido era mais viscoso, com um tremendo esforço o sangue que era raso e espesso percorria as linhas do pentagrama e escorria até cair da mão. Quando finalmente uma gota era formada e chegava no chão, era como pequenas pedras que rolavam, até chegava a fazer barulho na madeira.

A Torre do Relógio marcava cinco e quarenta e cinco da manhã de quarta feira e os quatro caminhavam pela rua em estado deplorável. Os operários e os trabalhadores do centro da cidade não conseguiram deixar de passar encarando. Alguns até disfarçavam, outros eram mais indiscretos mesmo e o clima não estava tão frio, ventava pouco. Sherman andava com a camisa aberta e mantinha as moedas na mão.

— Era tão esquisito e eu via tanta coisa que não fazia o menor sentido pra mim, nem consigo mais reconhecer aquela casa. — Ana falou de repente.

— É normal, as entidades daqui procuram um ouvinte, só que fazem isso da pior forma possível. Muito provavelmente ela queria te mostrar a morte dela e do povo dela, você via coisas nesse sentido não via? — Sherman já estava vomitando seus conhecimentos e Alice escutava aquilo ainda atordoada.

Começou a pensar sobre a sua mãe, porque mostrar coisas sobre ela se a intenção dos espíritos era mostrar a própria morte e as coisas das quais eles foram vítimas em vida.

— Aquilo era só pra mexer contigo mesmo, te quebrar pra te controlar — Sherman não conteve seu hábito desagradável.

Alice ficou em silêncio, discordava de Sherman, mas não explicaria isso a ele. Ficou pensando nesses assuntos não resolvidos que a entidade denunciou.

Pamela andava cabisbaixa e pensativa, apertando o Grimório contra o peito. Sherman não havia reparado no livro ainda. O dia prometia ser mais quente, um calor acolhedor. Era tudo que precisavam.

***

Alguns meses depois...

Hugo percorreu a estrada cantarolando os versos picantes de um Tango enquanto Alice dormia ao seu lado, coberta com uma jaqueta verde musgo dele, ela respirava profundamente e exibia uma expressão angelical capaz de esconder muito bem a preocupação que dominava seus pensamentos, há pelo menos uma semana Hugo insistia que ela deveria ver a sua mãe e acertar as coisas de uma vez por todas.

Procurou garantir pra sua atual namorada que prestaria apoio emocional durante toda a jornada. Quando ele fez isso Alice julgou acertada sua decisão de aceitar o pedido de namoro após muitas e muitas noites longe do cinza mórbido do seu quarto solitário. Aliás aquele cinza ganhou contornos de felicidade e prazer além de confidenciar todos os horrores daquela madrugada em que Alice foi possuída. Hugo foi seu companheiro e confidente, decretou que somente por ele a moça dos cabelos negros deveria ser possuída de agora em diante. Foi o jeito que achou pra retribuir o quanto ele próprio se permitiu ser possuído por ela.

Embriagada por esse sentimento de entrega e paixão, Alice descansava tranquila antes de encarar a mãe e o vento do fim de tarde espalhava o perfume dos seus cabelos pelo carro tornando a direção de Hugo muito mais prazerosa, eventualmente ele colocava sua mão direita por cima das mãos de Alice e lhe fazia um carinho.

O sol já estava se pondo e a coloração alaranjada da tarde relaxava as pálpebras de Hugo, seu carro vermelho era um pontinho solitário na estradinha de terra que se esticava abrigando várias árvores ao lado, árvores com poucas folhas devido a troca de estação, aos poucos um verão cheio de vida se aproximava e mesmo com eles se afastando do lado Urbano e deixando a parte Industrial ainda mais pra trás era possível enxergar a Torre Do Relógio.

A Torre que marcava a hora do acerto. O interior da Cidade Luz se revelou em lindos campos e casebres frutos de um estilo de vida que remontava a San Manche e os Sacrificados.

Uma vida simples, rural e bruta demais na percepção de Hugo. Conforme seu carro vermelho mergulhava naquele mundo particular, os camponeses assimilaram sua visita postados nas portas dos casebres vestindo roupas roídas e com o aspecto abatido, castigados pelo trabalho braçal e pela pouca comida que conseguiam colher para nutrir seu dia a dia. Ele adentrou mais e mais e Alice começou a dar sinais de que ia acordar.

Elisabeth morava na última casa deste corredor camponês. Saiu do centro algum tempo depois de Alice ter conseguido se mudar, Alice terminou a escola e não quis cursar faculdade. Bateu cabeça de emprego em emprego até ser contratada por Mario para viver sua morte diária no branco robótico daquele escritório. Antes de ser possuída pelas entidades e por Hugo ela vivia entre o branco e o cinza. Sua vida era tediosa.

O fim de tarde já estava dando lugar a uma noite mais quente quando finalmente chegaram na última casa, havia um cercado de madeira e Alice já estava de olhos abertos e meio embriagada de sono. Sentiu o carro parando e sua vista processou o sorriso nervoso de Hugo.

— Chegamos! Hora da verdade hein — falava para ajudar a namorada a acordar e se situar — Quer esperar um pouco antes de entrar lá? — prosseguiu e Alice apenas balançou a cabeça negativamente.

— Estou bem, deixa o carro ligado, tá? — Hugo assentiu e Alice abriu a porta e saltou do carro, a imagem da sua mãe parada na porta do casebre fez ela voltar naquela noite em uma fração de segundos, sentiu o frio das moedas nas mãos vazias. O rosto de San Manche lhe veio à mente e quase sentiu os pontapés daquela lembrança que o monstro esfregou na sua cara. Exorcizou todos esses pensamentos e respirou fundo se aproveitando de não ter sido vista pela mãe ainda. Hugo olhava preocupado mas não quis intervir. Ela vai no tempo dela, vai dar certo. Torcia em pensamento.

Alice começou a caminhar, altiva e confiante em direção a casa. Elisabeth viu a filha e levou a mão a boca, expressando surpresa e emoção, mal conteve as lágrimas e na verdade começou a ir de encontro a filha quase correndo. Sem pronunciar palavra as duas se abraçaram e ficaram assim por longos minutos.

Alice começou a tremer e chorar muito porque era a primeira vez que não sentia cheiro de bebida na mãe e estando tão perto dela ela não teve como evitar aquele abraço e apesar do cheiro de terra e suor pelas longas horas de trabalho. Sentir este cheiro ao invés do odor forte de Vodka e toda sorte de bebidas misturadas quase lhe deu a sensação de que nada mais precisava ser conversado.

— Filha, eu tava tão ansiosa pela sua visita, fala pra o rapaz entrar... — Alice recusou de forma muito polida o convite apesar de ter interrompido a fala da mãe e disse que em outra ocasião faria uma visita social, mas que estava lá para uma conversa séria onde as duas poderiam enterrar todo aquele passado conturbado. Poderiam recomeçar.

Sherman estava errado sobre a entidade. Talvez tivesse planos pra Alice.

A casa era simples com o chão batido, o cheiro de terra dava uma sensação de aconchego e Alice achava estranho sentir isso, a luz da lua no começo daquela noite lançava uma cor metálica sobre a casa. Alice ficou sentada no sofá da sala, Elisabeth foi até a cozinha e este foi o tempo para Alice ficar de olhos esbranquiçados.

Primeiro viu-se em um quarto apertando as mãos da mãe e chorando muito, chorava e soluçava enquanto a vida deixava os olhos dela, imersa em um novo plano sequência a cena foi alterada e ela conseguiu reconhecer aquilo que já foi um Pantano Macabro.

Mas aquele lugar amaldiçoado era belo, nas circunstâncias certas poderia ser chamado de paradisíaco até...  As águas tinham uma coloração verde, mas sem o aspecto peçonhento das outras visões, uma mulher muito linda conduzia um barco pequeno com Elisabeth deitada e com um semblante sereno, os pássaros cantavam dos galhos das árvores, nenhum cadáver podia ser visto e a beleza daquela mulher afastava todo medo que Alice poderia ter de demonstrar sua curiosidade.

O céu iluminado daquele lugar mostrava uma lua tão cheia, tão maravilhosa que Alice poderia jurar que ela própria brilhava junto com esse luar, se sentia preenchida, mas continuava a chorar, sentia paz no coração.

— Ajude ela a partir, quero levar ela em paz e quero paz a você também, partir com medo é a pior despedida —

Quando Alice saiu daquela visão, foi até o carro chamar Hugo, decidiu acompanhar os últimos dias da mãe.

Escolheu a reconciliação como despedida.

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