Capítulo 5

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Na manhã seguinte o frio despertou Alice, dormiu pouquíssimas horas após sonhar com o Barqueiro, estava zonza e o único alívio era o fato de não ter que trabalhar hoje. A trégua acabou e ironicamente no domingo, fazia um frio intenso, a cidade parecia carregada.

Alice estava sentindo aquele peso e então se agasalhou bem, se serviu de uma caneca generosa de café e ainda no silêncio mórbido da manhã abriu o notebook pra começar a escrever.

Começou tentando os seus poemas de sempre, falando sobre esperança, fazendo referência a uma garotinha que vivia muito triste numa casa suja e que a todo momento presenciava a loucura e o medo, mas nunca se abalava, nunca perdia a esperança de que poderia sair daquele lugar e ter a sua própria vida. Sem violência, sem negligência, sem ouvir da "moça triste" que ela não prestava pra nada.

Quando os olhos dela começaram a lacrimejar na frente do notebook ela resolveu mudar o tema, escrevia versos e mais versos buscando rimas e explorando as intenções das suas frases. Catarse, entrou em um processo de catarse, descreveu surras, abusos verbais, embriaguez e em determinado ponto conseguiu materializar todo o lixo que se sentia quando a "moça triste" falava aquelas coisas pra ela. Alice não conseguiu mudar de assunto e já chorava nesse ponto, mas não parava de escrever e seus dedos teclavam forte combinando com a raiva que fervia sua mente.

Até que chegou no limite, bateu na mesa com força, com os dois punhos fechados igual um martelo, chorou por um tempo com as mãos no rosto, cobrindo os olhos, soluçando e com a cabeça fervendo ainda. Raiva, mágoa, frustração e medo. Não havia ódio, apesar de tudo não era capaz de odiar sua mãe: a "moça triste" fazia e dizia aquelas coisas porque estava sofrendo.

Alice chegou a sentir o cheiro de álcool da infância. Tirou as mãos do rosto e ele se distorcia em meio a tristeza e as lágrimas desciam como uma cachoeira. A mãe cambaleando pela casa imunda, seu pai tinha lugar na memória como aquele pacato pescador sorridente, era melhor pensar nele assim do que como o filho da puta que tinha outra família. Dele sim Alice tinha ódio embora fosse um sentimento contraditório e ambíguo, não conseguia deixar de atribuir a ele o alcoolismo da mãe e todo o ciclo de merda que se formou em decorrência disso.

Começou a se perguntar o motivo que a levou a se prender naquelas lembranças tão repentinamente, e tão intensamente também. Alice já enxugava as lágrimas com as mãos e arrumava a mesa e chegou a fechar o notebook e quando olhou por cima dele lá estavam elas.

Três moedas com o lado do barco à mostra. Alice pegou a do meio e examinou bem, virou e viu o rosto feminino gravado do outro lado. Sentiu um calafrio e então com uma careta de nojo colocou a moeda de volta e foi pra cozinha procurar algo pra comer.

***

Anderson andava pelo cemitério da Cidade Luz, enquanto um outro paladino de sua inteira confiança estava conduzindo o funeral. Ana chorava, Pamela apertava as mãozinhas e exibia uma expressão de raiva, Marta estava aninhada ao marido e este acariciava seu ombro e lhe beijou os cabelos grisalhos. O cemitério era lindo, árvores enormes, grama, alguns trechos asfaltados e terra, do pó ao pó, lá estavam as lápides com nomes, cruzes, flores, frases e memoriais diversos.

Ana era a religiosa da casa, esperançosa também e depositava sua confiança na doutrina dos Paladinos. Lutar pela Luz leva a verdade e a verdade traz a revelação da justiça. Pamela estava furiosa e era só isso que conseguia expressar, só que em algum lugar daquela alma seu coração chorava. Todos estavam contritos no funeral e em uma contemplação sublime do fim do ciclo da existência. Carlos não suportou ter feito tão grande mal contra os seus, possuído ou não, ele preferiu tirar a própria vida. Mas ele já havia morrido pra Pamela.

Entre as grandes árvores e o céu cinzento com poucas nuvens e um vento cruelmente gelado Anderson era um pontinho preto perambulando entre os mortos. E eles, os mortos, encaravam Anderson com seus olhos brancos. Homens, mulheres e crianças alternadamente deitavam seus olhos mortos sobre o Paladino.

— Estamos esperando o dia que você vai se juntar a nós, estamos preparando tudo Anderson — as vozes distorcidas dos mortos fizeram sua advertência. Cobertos de terra estavam os futuros companheiros do Paladino, ansiosos por sua chegada.

A cruz invertida ardia no peito dele, seu hábito era todo preto e ele carregava um grande Grimório. Um diário contendo o nome de todas as entidades com quem ele já se confrontou. Entre outras informações relevantes.

Anderson nomeava-se um Guerreiro da Luz e ele tinha sua grande batalha e seus grandes mártires pra se devotar, embora a todo tempo ele ficava a mercê dos mortos, pra ser assombrado por eles. O Cemitério Das Pedras que hoje se tornou a grande Catedral da Cidade Luz engoliu todo o sangue derramado pela doutrina cega dos Paladinos, se a verdade conduzisse à justiça deveria então essa verdade ser imparcial. Anderson não era assim tão honesto, menos ainda os pais fundadores da Cidade Luz, os Paladinos.

Os mortos foram condenados pelos Paladinos e agora os mortos condenaram Anderson. Pelas lápides e seus vários proprietários em pé e com olhos fixos no alvo Anderson caminhava altivo e com a mão direta passava os dedos na cruz invertida, na mão esquerda o grimório e em passos lentos, cadenciados e firmes se dirigia aos presentes no enterro. As nuvens começaram a se acinzentar e o céu anunciava uma tempestade por vir.

— Este aqui deu um trabalho descomunal — sussurrou um colega Paladino pra Anderson e completou — Você deveria fazer o acerto comigo, também quero um pedaço do "bolo" que você dividiu com a polícia —

— Aqui e agora não amigo! Agora não — foi tudo que respondeu. Carlos encarava Anderson com metade da cabeça faltando e a mão na cintura com os dedos como se estivesse segurando a arma ainda, o olho todo branco do fantasma chorava sangue. Anderson pôde sentir o cheiro de pólvora misturado com sangue e chegou até a sentir seus próprios membros travando, simulando rigor mortis.

— Você tá bem? Não vai me falar que deu uma quantia astronômica pra eles — o colega zombava do jeito rígido que Anderson estava ficando e que chegou até a tossir e atrapalhar a cerimônia.

— Sabemos todos que Car..... — pigarreou e olhou interrogativo pra Anderson, irritado com a indiscrição. — ... q ...  que Carlos, assim como todos nós não era perfeito, mas que ele encontre a Luz, encontre paz e descanso! — finalizou o cerimonialista.

Ana secava as lágrimas com um lencinho e colocava as mãos nos ombros da pequena Pamela, podia sentir a tensão presente na criança. O caixão do marido fazia parecer uma ilusão, tudo aquilo parecia mentira, até mesmo a agressão dele e sua luta pela sobrevivência, achava mentira ela ter chutado a cara dele e ele não ter reagido, os olhos brancos e depois os olhos amarelos só poderiam ser ficção, frutos de uma imaginação fértil, ele que tão devoto amou por horas todo seu corpo e a fez tremer e reafirmar os laços carnais e pra além da física que os uniu. Como ele esteve tão perto de se tornar seu assassino, como pode ser isso?

Como poderia ser melhor com ele morto, Pamela claramente não perdoou e Ana não sabia o que sentir a esse respeito, como perdoar uma tentativa de homicídio. Como processar os efeitos daquela maldição que assolou o seu lar naqueles dias. Os céus cumpriram seu aviso, abriram-se os guarda-chuvas e o cerimonialista também protegido da chuva falava empolgado e intensamente. Quando, por fim, as suas palavras terminaram e as últimas homenagens foram prestadas, Ana, Pamela, Marta e seu marido se despediram da figura controversa que Carlos foi nos últimos momentos, morreu como suicida, atuou como um possesso aspirante a homicida.

Seu fantasma encarava Anderson, mais do que tudo ele queria que as coisas tivessem outra conjectura, que tudo fosse diferente, mas se era pra seguir desse jeito.

Carlos preferia estar pendurado nas árvores do Pântano.
















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