O Espelho da Bruxa

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Eu cometi um erro terrível. Brinquei com coisas que estão além da minha compreensão. E agora é tarde demais, o mal está solto, e eu estou condenado a esse destino que eu mesmo busquei.

Eu sempre fui apaixonado por lendas e histórias macabras. Desde a juventude, viajo pelo mundo a procura de lugares mal-assombrados e objetos amaldiçoados.
Eu já estava convencido de que o sobrenatural era apenas mito quando visitei a cidade de Salém nos Estados Unidos.

Acho que todos já ouviram falar de Salém, ela é famosa por ter sido o palco de uma grande caça às bruxas no século 17. Nessa ocasião cerca de 200 pessoas foram acusadas de bruxaria e 20 perderam a vida.
Não era uma época legal pra ser mulher e muitas inocentes foram queimadas no Tribunal da Santa Inquisição não só nas Américas, mas principalmente na Europa.

Atualmente o mercado de turismo se aproveita desse passado trágico pra atrair visitantes interessados no oculto e no macabro.
A maior parte, obviamente, é apenas armação, com videntes falsas, e cristais. Mas tive o azar de encontrar, talvez o único lugar com alguma coisa real.

No meu último dia de viagem, visitei um pequeno antiquário e comprei um espelho antigo com uma moldura bonita cheia de símbolos.
Segundo o dono do antiquário, o objeto era cercado de mistério e acontecimentos estranhos.
Ninguém o queria por muito tempo, e a pessoa que o vendeu, disse que ele pertenceu a uma mulher que foi queimada como bruxa em Salém.

Não acreditei em nenhuma palavra. Como colecionador, já estou acostumado com histórias como essa. Comprei o espelho, como um mero objeto de decoração, uma lembrança de uma boa viagem.

Chegando em casa, mostrei minha nova aquisição a minha esposa. Ela fingiu empolgação, mas a conheço muito bem e sei que sempre considerou meu interesse pelo sobrenatural como brincadeira de criança.
Pelo menos, o espelho era bonito. O pendurei na parede do nosso quarto, bem em frente a cama.

Nessa mesma noite, às três da manhã, acordei com a sensação de estar sendo observado.
Me sentei na cama, e tive a impressão de ver uma sombra passar pelo espelho.
Acendi a luz de um abajur e levantei com cuidado para não acordar minha esposa, que dormia tranquilamente ao meu lado.
Caminhei até o espelho e vi meu reflexo ser substituído por imagens assustadoras.
Seres de névoa invadindo espelhos e tomando o lugar de humanos, vivendo suas vidas.

Então acordei novamente, dessa vez com a luz do sol entrando pela janela do quarto. Olhei pro espelho, com desconfiança.
Parecia normal... até ele piscar para mim. Foi tão rápido, que teria passado despercebido se eu não estivesse encarando tão intensamente meu reflexo. Eu sentia um misto de medo e excitação.

"O que você está fazendo, querido?" perguntou Anne, minha esposa, caminhando até perto de mim.
Eu contei a ela sobre meu sonho.
"Você acabou de voltar de Salém e está empolgado com as histórias que ouviu. É normal sua mente pregar peças como essa. Mas você não pode passar o dia na frente desse espelho, amor. Vamos pra cozinha, tomar um café."

Percebi que Anne estava certa. A contragosto sai do quarto, tentando me convencer de que a noite anterior foi apenas um pesadelo e segui com a minha vida.

Mas quanto mais eu tentava esquecer, mas o pensamento invadia a minha mente.
O fato de o escritório em que trabalho ter paredes espelhadas não ajudava tampouco.
Eu estava ficando paranóico. Continuava com a sensação de estar sendo observado.
E eu tinha a impressão de que meu reflexo se mexia ligeiramente atrasado, como se apenas me imitasse, e não fosse eu mesmo. Algo parecia errado. Em alguns momentos eu juraria que vi um brilho de divertimento em seus olhos que com certeza não estava nos meus.

Quando cheguei em casa, entrei no quarto e voltei a observar o espelho sem piscar. Não precisei esperar muito.
Não espero que acredite em mim, mas eu sei o que eu vi. Meu reflexo sorriu (um sorriso frio e perturbador) e piscou os olhos várias vezes como se me provocasse.
Eu me afastei rapidamente, chamei minha mulher e mostrei o espelho a ela.
"Não vejo nada de estranho, querido, só nossos reflexos. Você está ficando obcecado com essa história. Porque não se livra desse espelho se ele te assusta tanto?"

Me desculpei com Anne e fiz o que ela aconselhou. Tirei o espelho da parede e guardei no sótão. Mas quando acordei na manhã seguinte, ele estava novamente em frente a cama.
Tentei me livrar desse objeto mais algumas vezes, mas ele sempre voltava pra parede como por encanto.

Nesse intervalo de tempo também fiz algumas pesquisas e descobri que em algumas culturas, é comum cobrirem os espelhos das casas quando alguém morre para impedir que o espírito fique preso. Outros acreditam que os espelhos são portais entre dimensões e é preciso ter cuidado porque nunca se sabe o que pode estar do outro lado.

Eu estava apavorado. Aquela coisa me observando não era meu reflexo e eu não sabia como me livrar disso.
Até que perdi o controle e, num impulso, quebrei o maldito espelho com um soco. Os cacos cortaram minha mão, que ficou vermelha de sangue. E vi uma névoa negra sair deles.
Anne entrou no quarto nessa hora, provavelmente graças ao barulho, e me olhou em silêncio com os olhos arregalados.

Não havia mais o que fazer, então apenas joguei o que sobrou do espelho e da moldura no lixo.
Se quebrar espelhos dá azar, manter aquela coisa também não estava trazendo sorte.
No dia seguinte, quando acordei, suspirei aliviado ao ver que não havia nada na parede. Será que eu finalmente tinha me livrado da maldição?

Eu beijei minha esposa e fui trabalhar cantarolando. Mas logo voltei a ter a sensação de estar sendo observado. E o sentimento ia ficando mais e mais forte. Eu olhava para trás e não havia nada, nem um vulto, nem um som, só o vento. No carro, eu olhava pro espelho retrovisor esperando ver algo no banco de trás.

Além disso, mais um acontecimento merece destaque. Quando eu estava no trabalho ouvi o som de vidro quebrando vindo de fora do prédio. Olhei pela janela do escritório, e vi alguém idêntico a mim parado na entrada.
Eu corri em direção a saída, desci as escadas sem nem olhar pra trás. Quando cheguei na entrada do prédio, estava ofegante. Olhei ao redor, não havia nenhum sinal do meu clone, meu reflexo perseguidor.

Não consegui pensar em mais nada durante o resto do dia, mas tive que fingir que estava tudo bem até o fim do expediente.
Quando finalmente deu meu horário, e peguei meu carro no estacionamento, haviam cacos nos bancos e o espelho retrovisor estava quebrado.
Dirigi para casa o mais rápido que pude, meu coração estava acelerado, e tinha um pressentimento terrível.

Quando cheguei em casa, fui direto pra cozinha. Minha esposa estava lá, de costas pra mim, cortando legumes na bancada.
Cumprimentei ela, mas não esperei pra ouvir a resposta. Corri até o quarto e quase tive um infarto quando vi o espelho novamente pendurado na parede. Bem, era a mesma moldura antiga, só que o cristal nela estava inteiro. E dentro dele, estava a imagem de Anne, minha amada esposa, com olhos vermelhos e tristes, a garganta cortada. A única coisa que me impediu de desmoronar foi o medo e a adrenalina no meu sangue. Mas se Anne estava no espelho, quem era a mulher na cozinha?

Ouvi uma batida na porta.
"Querido, o jantar está pronto." disse uma voz que não era a de Anne.
Pensei em fugir pela janela, mas não arriscaria pular do terceiro andar.
Eu tinha que sair pela porta. Abri a gaveta da cômoda, e tirei um pequeno revólver carregado de dentro dela. Eu abri a porta, pronto pra atirar, mas não havia ninguém do outro lado. Atravessei o corredor, desci as escadas e passei pela cozinha sem sinal da criatura.
Quando finalmente cheguei a entrada, aquela coisa na forma de Anne estava parada em frente a porta com uma faca de cozinha na mão.

Eu apontei a arma pra cabeça dela e atirei. Ela nem piscou. A bala atravessou sua testa deixando um buraco. Ela soltou a risada mais tenebrosa que já ouvi e me lançou um olhar mortal.

"Nós pensamos em deixar você vivo, como recompensa por nos libertar. Mas você é igual a todos os homens. E é dever de uma bruxa queimar todos que tentarem nos queimar."

Eu dei alguns passos pra trás, ainda segurando o revólver.
"O que você é? O que quer?"

"Somos os espíritos das bruxas que foram queimadas na fogueira. Quando o Inquisidor chegou a cidade, nosso clã fez esse feitiço para nos proteger da crueldade dos homens. Nossos corpos foram destruídos, mas nossas almas escaparam. Ao quebrar o espelho, você nos libertou. Agora podemos procurar novos corpos e buscar vingança."

Tentei atirar de novo, mas a bruxa fez um movimento com o braço e a arma voou das minhas mãos. Ela se aproximou de mim lentamente e desmaiei de pavor.
Quando acordei, eu estava na parede do meu quarto, de frente pra cama. E na minha cama dormiam duas pessoas que qualquer um acharia ser minha esposa e eu.

*Espero que tenha gostado da história. Eu ficarei muito grata se puder me apoiar curtindo e comentando. E cuidado com os espelhos... alguém pode estar te observando :)

20 Contos de Terror (Pior que a Morte)Onde histórias criam vida. Descubra agora