Um mesmo homem nunca entra duas vezes num mesmo rio. Este, a princípio, era seu lema favorito, até que a vida o pôs em prática e passou a ser uma verdade cada vez mais difícil de ser encarada.
Ela tinha um mau humor constante e um cansaço que não de dissipava nem com uma boa noite de sono, andava ranzinza e reativa ( talvez, não fosse a melhor semana do mês, mas já não era há muitos dias). A noite caia e a dor de cabeça à espreita lhe sequestrava, fazendo-a refém da apatia e da raiva. Odiava que as coisas tivessem mudado, sentia-se ameaçada e sufocada, debatia-se e se revoltava. Àquela mesa queria responder a cada mero horário marcado que não ocorre-se de acordo com sua vontade, estava louca por um debate que no fim acabaria por expor suas frustrações e fragilidades, mas ela temia que no fundo fosse esquecida pela alegria que antes lhe pertencia.
Via suas irmãs chegando, não eram amigas, talvez colegas, mas dentre elas uma lhe fazia falta a amizade, conquistada em tempos de liberdade, onde tudo e nada importavam, apenas a boa vontade de estarem juntas. Suas irmãs eram legais e acreditava ser possível futuramente fazer amizades, mas não era certo serem suas amigas. A questão era que isso não importava, porque inconscientemente as via como inimigas de sua paz. Sozinha ela era mais uma apenas, porém junto das outras passava a ser um grupo necessitado de controle e ela odiava o sentimento de classe. Karl Marx que a julgue, mas ela só queria ser operário quando lhe era conveniente, aliás a união faz a força, e quando esta acabava ou o mão de obra tornava-se covarde ( para sua frustada alma) voltava-se para o seu direito inalienável de liberdade, o povo tinha o direito de derrubar seu governante autoritário. Mas ela estava só, com o coração acelerado encarava a possível bronca armada até os dentes, mas esta nunca lhe ocorreu. Ela queria ser julgado reta por que assim escolhera e não porque fora tolhida. Igualmente há tanto valor tanto em cumprir uma regra quanto em escolher fazer-se digna por conta própria, para ela a última era mais valorosa e era esta a coroa que pretendia carregar, pois queria ser virtuosa mestre e não discípulo. As rosas possuem espinhos, e no meio da gentileza sentia-se espetada por eles, não era pessoal.
Sempre fora uma menina calada, fazendo o possível para não ser um incômodo, pondo-se sempre a sombra de sua autoridade, tornava-se assim invisível, era o que queria. Porém as circunstâncias mudaram, ela não confiava em suas autoridades e como as regras do jogo ainda não lhe eram entregues ou mudadas, sonhava com sua maioridade, quando seria responsável por seus crimes e livre de igual pra igual com aquelas tias. Faria questão de lhes jogar na cara.
Talvez todo o conflito só existisse em sua mente. Talvez em algum momento toda aquela pressão cedesse e se transformasse em mera formalidade. Ainda poderia abraçar os meninos, seus primos, sem que lhe fosse exigida a santidade dos puritanos, ou melhor, observados como se cometessem um crime. Ela era um ser humano, sabia o que sentia e também sabia se portar, era decente e dava valor ao seu bom nome e sabia que se desejasse aprontar faria um trabalho bem feito, ser descoberta não seria seu crime. Mas isto aflorou em seu coração por desejo de revolta, apenas uma paixão intensa já a fizera antes correr riscos, mas não poria sua reputação ou de suas irmãs em pauta.
No cansaço daquele dia e do mau humor que trazia, sentiu o gosto do desgosto, a mistura racemica de luta e derrota, o fracasso de sua revolução interna. Carregava as cadeiras da mesa com peso, com dor e a respostas curtas e grossas a quem de fato não as merecia, percebeu que ao seu redor todas sorriam e, embora concordassem com ela não amargavam o fel em suas bocas, eram leves e felizes. Percebeu que só ela carregava o estandarte de uma bandeira que já não reconhecia as cores, só ela insistia em carregar um peso que de fato não era seu, havia quem de fato temesse a opressão, mas esta não era ela e afinal de contas nunca falara com seus primos para os ter com tanto apreço, mas os tinha. Entendeu que esta guerra estava perdida e que o melhor seria mesmo uma revolução gloriosa, mas decidiu recuar e sentiu repulsa por si mesmo e por seu estado. Tentou sorrir mais, porém o choque lhe foi grande e tudo o que conseguiu naquele dia foi sorrir sem emoção e torcer para a noite naquele lugar terminar logo.
As mudanças doíam e ela ainda questionava o porque e a necessidade delas. Aquele quartinho nunca mais seria aberto? Nunca mais fofocariam lá na frente? Estaria sempre cercada de suas irmãs e assim vulnerável a condição de foragida? Ela não sabia e temia. Mas por mais que doesse a mudança também veio com bençãos, ela começou a se arriscar para além de sua timidez, um esforço grande e não impactante, porém válido. Ela já havia plantado sementes que lhe renderam amáveis cumprimentos e que no momento floresciam, entretanto seu verdadeiro ato de coragem foi predefinido por dois fatores: um abraço e um acaso.
Ela viu o loiro na frente da escola. Que coincidência, pensou em dizer um "oi", mas ele conversava como um amigo e cedo se foi a oportunidade. Em uma apresentação que este estaria presente recebeu um abraço amigável dele, alguém que nunca havia de fato tido uma conversa. Alguém gritou que não podia abraços, era uma piada acerca das imposições novas e sem nexo, mas doeu em seu coração como se tivesse sido rejeitada por um amigo, "desculpe" foi sua resposta sem jeito e que parecia soar com uma nota de constrangimento. No dia seguinte, quando ocorreria mais uma prova naquela mesma escola onde o viu, mandou uma mensagem, não poderia descontar a revolta de suas intenções sem o risco de falta de honestidade, porém também pretendia reatar a conexão que perdera naquele abraço interrompido, o motivo de tamanho esforço? Nem mais ela sabia, talvez fosse só revolta, não almejava uma amizade e não via sentido em seu esforço, mas funcionou para iniciar breves conversas e novos abraços de cumprimento, em algum lugar isto acabaria por dar e de fato o esforço não foi ruim, uma amizade sempre trás consigo um sorriso.
Suas irmãs também não pareciam mais tamanho peso. Um dia, foi ao banheiro e ouviu cochichos vindo de fora, soube logo que pretendiam assusta-la, ao sair avistou uma . . .duas . . . três, até que notou a presença de todas. Estavam todas ali tramando contra ela, seu coração pulsou tanto que sorriu, imaginou que apenas as mais próximas estariam ali por ela, mas nenhuma faltou e a lembrança lhe trouxe uma lição antes ouvida : os amigos são aqueles que te conhecem nos seus defeitos e excessos e mesmo assim estão ao seu lado. Ela então as amou, amou sua irmãs naquele momento e as viu como realmente eram. Amizade na sua mais simples forma.
De volta àquela mesa, recolocou as cadeiras no lugar com um ar mais leve, mais sereno. Comeu e riu, talvez nem sempre as coisas que contrariavam sua vontade fossem motivo de guerra e revolta, de revoluções e tempestades, algumas coisas se resolvem por si mesmas ou mesmo permanecem iguais por um tempo. Algumas mudanças não são as vezes tão ruins e mesmo elas não podem impedir a contingência de trazer suas bençãos ao mundo, que chegam por sua causa. Algumas alterações, embora dolorosas e abruptas, trazem consigo novos retalhos para os vitrais da história de cada indivíduo, é impossível ter tantas cores e detalhes em um sem antes ter muitos cacos de vidro colorido, formados por ocorrências abruptas. São precisos, são bençãos e história.
Despediu-se então de cada uma delas, as irmãs. Conversou e estendeu a mão em despedida a seu primo. Cumprimentou os outros que viu em seu caminho e deixou aquela sala com a mesa, o destino não fora tão injusto assim, só tramou lhe um tremendo susto de contingência.
As mudanças não são tão ruins assim. O homem nunca é o mesmo e nem o rio que flui, isto se chama vida.