Carência e desprendimento

11 2 0
                                    

Quando foi que o desejo por companhia se tornou carência? Quando foi que o sorriso se tornou mania? Ou quando foi que agradar os outros tornou-se prioridade? Esse era o defeito daquela menina. Achava que tinha aprendido a calar-se, a dar espaço para os outros ao reconhecer sua insignificância, achando assim o seu lugar, mas a lição não lhe penetrou fundo a mente e mais uma vez seu coração gritava para ser ouvido. Ela reclamava e se queixava, sentia falta dos seus pais, sentia falta de si mesma, sentia falta de uma conversa inspiradora e de filosofar com seus companheiros. Procurava nos outros cada migalha de atenção que pudesse extrair e se retraia com uma resposta seca que aos poucos percebeu não ser pessoal, mas também magoava-se irracionalmente por suas conversas não vingarem uma nova no dia seguinte. Ela tinha esquecido que a solitude era a maior qualidade e vantagem frete a solidão desesperadora.

Às vezes achava que tinha finalmente aprendido a calar-se consigo mesma e a amar seu silêncio e companhia própria até a chamarem e novamente empolgar-se, cravando uma faca no próprio peito e culpando os outros por seu delírio. Era que não podia mais suportar a si mesma, as vozes na sua cabeça, as preocupações, a ansiedade latente e tudo que a faziam querer gritar, precisava de um alívio, precisava falar para curar-se e praticar o auto esquecimento, pois ás vezes cansamos de nós mesmos.

Então cansou, parou de buscar e embora se sentisse como uma estranha naquela mesa não se negou a aceitar seus convites para se juntar a eles, também não se recusou a ir em seus aniversários e nem fez desfeita de seus vícios, fez- se educada e boa ouvinte, talvez não se curasse daquele problema, mas certamente teria de enfrentá-lo. Reclamava demais e não via o que estava a sua frente, porque o problema não estava lá fora e por isso o negava constantemente como de sua autoria. Abria o peito com a intenção de que vissem seu coração, contudo temia ser vulnerável e por si só tornava-se ainda mais; sorria sempre e dava os melhores " Bom dia!" com a esperança de que a vissem, era gentil e se oferecia a fazer favores - ajudá-los - mas isso não a preenchia, estava cada vez mais vazia. Aprendeu a buscar a própria companhia e a esperar que vida lhe trouxesse sua sorte.

7:20 da manhã, a sala estava vazia, fria e o vento a fazia estremecer. Uma nova mensagem, um número desconhecido, um convite pra uma festa de 18 anos, seu queixo caiu. Certamente não era o primeiro de muitos convites que recebeu, mas de quem? Isso a surpreendia; Esther e seu aniversário dos anos 70. Estava se perguntando por que tinha sido convidada, ela mal conhecia a colega mas sentiu-se honrada e feliz, tinham-na visto novamente, seu coração pulsou. Ainda era sábado de manhã, andou com sua vó o comércio inteiro, comprando o que poderia ser a melhor fantasia de anos 70 que poderia montar com seu orçamento, porém ficou incrível, pois assim se sentia. A festa estava marcada para 18:00, era ingenuidade de qualquer um achar que a o aniversário realmente começaria aquele horário, chegou até cedo comparado a quem apareceu 21:00 na comemoração.

Um dia, estava de chapéu de vaqueira, botas de couro, saia e cinto, pronta para o evento da agropec. Comia churrasco com sua família em um dos stands da feira, deliciava-se com aquilo que havia sido destinado aos sacerdotes do divino -carne preparada no fogo. Depois de tanto passar fome esperando que o rodeio tivesse início finalmente pode aliviar-se, melhor ainda foi ver sua amiga, com quem imaginou ter genuína amizade, pois não irrefletidamente a considerou, tinha ela sido a princípio uma indiferença que se mostrou estar a seu lado. Mesmo assim faz parte da vida ter o coração partido, não se pode crescer sem isso e foi tratada com total desconsideração, a raiva e chateação a consumiam, tentou demonstrar sua insatisfação, era assim que sabia que realmente se importava, mas calou-se, não valeria a pena, contudo sabia que quando assim a tratavam - aqueles que amava- cortava os laços. Ela não era rancorosa, só não daria a eles aquilo que mais tinha de precioso, seu tempo. Não trairia mais a si mesma, fazer-se de livro aberto e acessível não a fizera amiga de ninguém, não daria a mais ninguém a chance de ver seu coração, seu amor e tempo seria apenas àqueles dispostos a dar o mesmo, consideração seria algo destinado aos seus. Tentaria deixar de querer agradar aos outros, seria ela mesma e sua própria companhia.

De volta ao aniversário...chegou às 18:50, estava animada, mas também um pouco envergonhada de sua fantasia, aliás naquele momento ficou preocupada de não estar estilo anos 70, porém estava e logo sua vergonha se dissipou ao abraçar a aniversariante e cumprimentar a única colega que já havia chegado. Eram apenas elas três . . . quatro, quando mais uma chegou; a música estava agradável, o clima de conversa era bom. Mas não durou muito....

Logo mais pessoas foram chegando, as conversas interessantes se dissipando deram espaço ao que pareciam ser longos murmúrios em uma língua que não conhecia, de íntima futilidade. Calou-se, suas tentativas de iniciar uma conversa logo se tornaram infrutíferas; não se sentia sozinha, porém começou a ficar ansiosa, sua cabeça parecia estar a mil por hora e seu coração batia num ritmo desconfortável, não era rápido nem calmo, entretanto a música também não ajudava, as baixarias mais explícitas entravam por seus ouvidos enquanto tentava ignora-las, não queria se misturar a toda aquela fantasia libertina, até franzia a testa que regularmente tinha de relaxar, pois seria estranho a verem assim.

Algumas horas antes do aniversário ela descobriu que haveria um jantar, em um lugar muito especial para ela, com pessoa especiais, amigas, uma família que amava e via todas as segundas-feiras. Ela queria estar lá, mas foi ao aniversário sorrindo... até tudo se tornar chato e a vontade de ir embora se tornar crônica, pensou consigo mesma que deveria ficar, aliás foi convidada, seria ruim ir embora assim tão "cedo" ? Contudo não estava se divertindo e gostaria de estar em outro lugar. "Teria feito seu papel,não? Aliás, quem chegou tarde foram os outros e não ela. Não sabia que tinha a possibilidade de ir embora e num gesto brincalhão e queixoso,
disse a sua mãe que não estava se divertindo e supreendentemente surgiu esta oportunidade, que poderia buscá-la e levá-la para o jantar. A menina logo se animou, mas também sentiu-se culpada, não gostava de magoar os outros e nem mesmo decepcionar ninguém, mas mesmo assim escolheu partir, era sua hora e nesse momento escolheu a si mesma. Com o peito doendo e um pouco indecisa criou coragem e despediu-se da aniversariante com um abraço, algo que aprendeu que sempre teria um grande valor neste mundo. Ao sair viu seus colegas recém chegados brincando, quis ficar, porém já era tarde e mesmo assim sabia que onde muitas oportunidades são perdidas outras são encontradas, contudo tudo são escolhas e essa foi a que fez, partir dali numa escolha por si mesma.

Jamais saberia o que tinha perdido naquela noite, mas soube o que ganhou... muitos sorrisos e abraços de pessoas que amava, fotos com as amigas e memórias que ficariam para o resto de sua vida, afinal foi feliz com sua escolha.

Contos 16: histórias de CeciOnde histórias criam vida. Descubra agora