A Briga

1 0 0
                                    

Beatriz

Apesar de uma noite de sono incrível, abri minha porta dando de cara com o mau humor matinal - agora usual - de Giu, ela estava completamente polida em um dos seus conjuntos monocromáticos com saltos combinado, mas o olhar em seu rosto mostrava que hoje seria um dia tão mais difícil quanto os outros.
Descemos juntas para o café da manhã e dei meu melhor para ser boa com os funcionários, o que parecia irritar ela ainda mais enquanto comia a minúscula barra de granola.
- Se você não comer comida de verdade, vai sumir - constatei delicadamente - eu posso fazer seu café da manhã e te servir lá fora, o dia está lindo.
- Não - ela continuou cortando a barra com uma faca em pequenos pedaços a serem mastigados.
- Quer dar um pulo na piscina? A água está bem chamativa - tentei novamente - eu fui ontem e...
- Não - ela largou a faca em um barulho desnecessário, uma das funcionárias entrou com minha xícara de café, ela estava grávida aparentemente de pouco mais que quatro meses, eu tinha visto alguns funcionários comemorarem com ela dias antes, ela depositou a xícara suavemente a minha frente e sorriu delicadamente pra mim - ela é sua dentista? - a mulher pulou em seus pés, ajeitando sua postura.
- Pois não, senhora Petrov? - ela perguntou suavemente.
- Você é burra ou surda? - as palavras de Giu derramavam veneno pelo chão - eu perguntei se ela é sua dentista?
- Não, senhora Petrov - eu vi quantos os olhos dela encheram de lágrimas.
- Giu, para com isso - pedi intervindo.
- "Não" para qual das minhas perguntas? - ela bateu a mão na mesa me como para me calar.
- Você não precisa ser uma pessoa ruim porque não gosta de estar aqui, Giulia - sibilei as palavras - os funcionários não tem culpa das suas angústias.
- Por que diabos você não me apoia? - ela esbravejou - você tá por todos os cantos sendo amorosa com eles, enquanto eu tô sofrendo e você nem se importa!
- Eu me importo com você! - lutei para não levantar meu tom de volta - mas você tá sendo irracional, está jogando neles o peso de você ser uma pessoa infeliz!
- Você tá do lado deles, dos russos! - suas palavras cuspiam nojo.
- Eles não são os culpados! - me irritei e minha voz com toda certeza subiu uma oitava ao final.
- Você nem mesmo é russa! - seu rosto estava tão próximo do meu enquanto ela se inclinava ao meu lado na mesa, seu pescoço vermelho enquanto ela movia suas mãos no ar apontando pra mim - sua traidora!
- Eu nem mesmo sei se sou totalmente italiana! - joguei minhas mãos aos céus cedendo a sua loucura- ou você se esqueceu que a minha mãe é uma pessoa desconhecida?!
O silêncio recaiu entre nós, a funcionária com os olhos arregalados enquanto da entrada da sala eu via Amaro aguardando para entrar, suspirei profundamente e massageei minha testa quando acenei com a mão para a funcionária e falei:
- Por favor, volte aos seus afazeres, eu cuido dela hoje.
- Não fale de mim como se eu não tivesse aqui! - ela rosnou se ajeitando em sua cadeira, enquanto a funcionária saia - e não dispense os meus funcionários, eles não são seus amigos!
- Eles até podem não ser meus amigos, mas tenho certeza que nenhum deles está nesse momento pensando em me envenenar - resmunguei as palavras tomando um gole de café enorme.
- Você é muito engraçada - ela engoliu um pedaço de sua barra despedaçada - parece aquelas piadas de mau gosto.
- Bem, eu estou aqui sendo unicamente a sua babá e garantindo que nenhum russo tente te sufocar em seu sono - olhei diretamente em seus olhos - então a piada é você, docinho.
- Não me chama de docinho - ela bateu em meu braço estressada.
- Tudo bem - parei apenas um segundo - docinho.
Antes que ela pudesse pular em mim, Alexei estava entrando no ambiente com Dimitri em seu encalço, nos separando momentaneamente de uma briga infantil. Se de alguma forma fosse possível, o humor de Giulia piorou e sua carranca aprofundou.

Sempre elogiei a compostura dos italianos, mas precisava pontuar que os russos estavam de parabéns, nessa altura do campeonato até mesmo eu era uma concorrente para sufocar Giulia em seu sono de beleza.

Alexei vestia um terno vinho com uma camisa branca, seus sapatos eram marrom escuro combinando com seu cinto e o relógio de tira de couro em seu pulso. Quando nossos olhos conectaram eu sorri e o saudei:
- Bom dia, raio de sol, como dormiu?
- O melhor sono que tive em anos - ele se sentou na outra ponta da mesa de seis lugares e sorriu.
O olhar no rosto de Dimitri foi impagável, parecia que alguém tinha literalmente explodido seus miolos enquanto ele olhava entre eu e Alexei, seu próprio sorriso nascendo em seu rosto.
O bom humor era contagioso.
- Aprendi algo novo ontem - Dimitri se inclinou na mesa como se fosse me contar um segredo - buonasera, Beatriz.
A minha risada ecoou pela casa quando me surpreendi, bati algumas palmas em entendimento e vi enquanto o corpo de Dimitri tremia de forma silenciosa.
- Você sabe o que significa? - perguntei animada.
- Bom dia? - ele estava genuinamente tentando.
- Não - ri um pouco mais - isso é boa noite, bom dia é bongiorno.
- Bongiorno - ele repetiu abrindo os braços com as mãos em forma de coxinha para Alexei.
- Me ensina alguma coisa - pedi praticamente saltando na minha cadeira como uma criança pedindo sobremesa antes da jantar - como eu falo bom dia pra você?
- Dóbraie útra - Dimitri falou e eu quase engasguei.
- Eu não consigo repetir isso, por que sempre parece que vocês estão brigando quando vocês falam algo? - zombei tomando mais do meu café.
- Pelo menos tenta, vai - ele me ofertou falar de forma mais lenta.
- Dóbraie - repeti após ele - útra!
- Agora fale rápido - Dimitri incentivou e eu falei - pode melhorar um pouco.
- Eu vou tentar treinar e quem sabe no almoço eu esteja um pouco melhor - sorri piscando para ele.
- Você pode acabar conquistando o meu coração - ele pousou a mão em seu peito em um gesto exagerado.
- Dizem que os russos possuem os corações mais leais do mapa - brinquei por cima da minha xícara.
- Meu Deus Bea, para de ser legal demais! - ela rosnou no meu rosto, me calando assustada e desprevenida com seu avanço - ninguém nunca vai te amar porque você é tão infantil!
O silêncio caiu entre nós, pesado e denso, fiquei completamente consciente e da forma mais calma o possível me levantei e comecei a me afastar sem olhar para ela.
- Bea, para - ela levantou e eu me afastei mais um passo, colocando minha xícara na mesa em meu caminho - para, Bea, fala comigo!
- Não tem o que falar - meus chinelo fizeram barulho quando pisei mais duro - eu agora sou um problema pra você, mas você não pensava assim antes Giu, você não é a mesma pessoa e eu não vou deixar você me atacar por isso, porque você não é feliz, não fui eu que obriguei você a ficar presa aqui na Rússia.
- E agora você tá indo embora como se eu fosse a babaca - ela passou a mão pelo rosto se sentando, voltando a sua postura costumeira de megera.
- Não - parei meus passos no liminar do ambiente e me virei apontando pra ela, lágrimas nos meus olhos - não faça disso como se eu fosse a culpada por suas atitudes, eu fiquei com você esperando que você fosse me ver mais do que só um apoio emocional quando essa sua nova personalidade não está por perto, agora você me fala que ninguém nunca vai me amar? - minha voz começou a sair mais alta - eu tô cansada de você, dessa sua atitude e da forma como você me trata, cansada de ver você tratando todos como descartáveis e você bem saiba que eu vou encontrar alguém pra me amar do jeito que eu me amo, mesmo que não agora, eu me amo pra caralho, enquanto você vai ser sempre essa foda meia boca e esse papo vazio.
- Você é uma peste! - a voz dela saiu rancorosa e alta.
- Então você deveria ficar longe de mim porque eu posso ser a peste negra e te matar! - eu gritei do meu lugar.
Me virei saindo da sala e corri para o quarto, nunca coloquei meus tênis tão rápido quanto o fiz, colocando um casaco de frio por cima das minhas roupas casuais, desci as escadas e sem pensar peguei as chaves do carro de Alexei, continuei meu caminho porta a fora até a garagem, o Dodge preto dele mal sacudiu quando eu pulei para dentro acionando o botão para abrir o portão de saída.
Eu não olhei para trás, apenas acionando o gps do meu celular para o bar mais próximo. Poucos eram os dias que eu conseguia lidar com Giu completamente sóbria, já beirando o alcoolismo de tanto que precisava amaciar meus nervos ao seu redor.
Estacionei na lateral de um bar parecendo um espaço de militares e motociclista, o rock suave tocava de fundo enquanto eu me afundei em uma banqueta e acenei para a bartender.
- O que vai querer, querida? - seus cabelos ruivos brilhando na meia luz do bar.
- Vodka, uísque, qualquer coisa servida pura e com gelo - apoiei minha testa no bar - por favor, não deixe o copo esvaziar.
- Dia difícil? - sua voz sorria.
- Vida difícil - resmunguei quando levantei a cabeça para o copo de líquido transparente que ela colocou ao meu lado.
- Um brinde a isso - ela sorriu virando a própria dose.
Eu perdi a conta das minhas doses após a sétima, vendo o loiro opulento que se sentou ao meu lado.
- Você volta pra toca de onde você saiu, Dimitri, eu não tô mais boa pra te aturar - resmunguei bebendo mais uma dose.
- Bea, eu vi que você não tá bem, só vim aqui pra gente conversar - ele pediu uma cerveja com a mão.
- Por que eu iria querer conversar com você? - rangi as palavras.
- Porque a gente já tem uma intimidade - ele me deu um sorriso brilhante.
- Dimitri, intimidade vai ter a palma da minha mão com a sua cara - mesmo com palavras duras, minha voz estava mole para ele, mesmo que eu tentasse seria impossível ficar brava ao seu redor, Dimitri passava a energia de um Golden Retriever.
- Se é me bater que vai te fazer ficar melhor, vamos lá - ele se aproximou - eu não vou negar apanhar de uma linda mulher.
- Seu pervertido - virei mais uma dose - agora eu realmente quero você longe de mim!
O riso dele ecoou ao meu lado, precisei sorrir. Eu o senti muito antes de o ver, cruzando o bar Alexei bateu um cartão preto no balcão fazendo Dimitri pular em seu lugar, completamente desprevenido.
- Olá, querida - ele me saudou um pouco mais doce.
- Isso é a intervenção dos irmãos Petrov na vida da pequena bastarda? - brinquei - vocês não tem pessoas para matar e drogas para vender?
- Isso tem todo dia - Dimitri murmurou - você é bem mais legal que o nosso trabalho.
- Eu vou levar como um elogio, apesar de saber que eu estou longe da aventura que vocês dois estão vivendo nas sombras - brinquei batendo minha outra dose na cerveja de Dimitri antes de virar o shot.
- Você vai ter um coma alcoólico - Alexei pontuou quando a bartender colocou uma dose de uísque na sua frente.
- Se eu morrer, me manda de volta pra ser enterrada na Itália - falei rabugenta - apesar de saber que não vou ser enterrada com a família que escolhi.
- Realmente importa onde vai ser enterrada? - ele deu uma leve batidinha no meu ombro com o seu.
- Acho que não mais - suspirei - eu de verdade não sei o que aconteceu com ela, mas ela não era assim, eu acho.
- Ela é sua irmã, não precisa defender os russos da boca afiada dela - Dimitri balançou a cabeça - não compra uma briga que todo mundo sabe que você não vai ganhar, ela te ama mesmo que não pareça.
- Suas atitudes deixaram as coisas entre nós muito claras - suspirei - ela tá infeliz, eu não me lembro de uma vez que alguém disse não a ela por tanto tempo, eu tenho certeza que ela implora pra Ângelo pra voltar todos os dias.
- Se ele quiser, a gente manda ela com laço e tudo - Dimitri zombou.
- Não, não mandam - olhei para o maxilar apertado de Alexei - vocês queriam poder, mas de nós três, a única que pode se livrar dela sou eu, voltando pra casa.
- Você pensa em voltar pra Itália? - Alexei me olhou, seus olhos duros nos meus.
- Eu penso na vida que eu poderia ter se voltasse pra Itália - dei de ombros desviando o olhar - eu não posso passar o resto da minha vida sendo a babá dela, em algum momento você tem que pegar essa responsabilidade pra você.
O silêncio recaiu entre nós três, a implicação das minhas palavras. Não era como se eu não soubesse meu lugar, eu sabia, sabia que essa aventura às escondidas com Alexei não duraria pra sempre e que ele não era meu, era muito legal quando acontecia, mas como seria quando eu não estivesse mais por aqui?

Ele seria o marido dela além do papel?

- Eu levo seu carro - Dimitri falou para Alexei - vamos voltar pra casa, nós precisamos trabalhar e você precisa voltar pra... como você chama mesmo?
- A masmorra - sorri suavemente.
- Uma masmorra que me custou uma pequena fortuna - Alexei brincou.
- É a masmorra mais chique do mundo - ironizei - se tivéssemos um ranking de masmorras, a sua estaria no topo.
Caminhamos para o carro enquanto Dimitri finalizava a conta, Alexei abriu a porta para mim e me ajudou a entrar gentilmente, encostando mais em mim que o necessário.
O caminho estava silencioso enquanto eu observava os carros passarem na rua, até sua voz rachar o silêncio:
- Você quer voltar pra sua casa? - olhei para seu rosto, tentando desvendar o que ele queria com aquela pergunta.
- Eu não sei - dei de ombros - eu gosto da Rússia, não vi muito além da sua propriedade, mas também sei que existe um futuro pra mim em casa.
- Se eu te pedisse pra ficar, você ficaria? - seu maxilar se apertou, precisei de alguns segundos para pensar na resposta.
- Se você me pedisse pra ficar, eu ficaria, Alexei - suspirei - apenas não sei que bem isso faria a nós, ao seu casamento e a Giulia.
- Ela não está realmente brava com você - ele constatou.
- Está sim - desviei o olhar para o trânsito a nossa frente - pela primeira vez na vida Giu e eu daríamos tudo pra trocar de lugar, eu nunca tive realmente nada que ela quisesse, mas agora ela olha pra mim e enxerga a liberdade de ir e vir que ela não tem, enquanto eu olho pra ela e vejo quantas oportunidades ela tem de ser feliz e desperdiça só porque a vida não está como ela queria.
- Você gostaria de trocar de lugar com ela? - ele estacionou no portão da mansão, olhando em meu rosto.
- Você é um bom homem, Alexei - sorri suavemente - ela ganhou na loteria com você, mas para alguém com o dinheiro dela, um valor a mais ou a menos é indiferente.
Ele abriu o portão em silêncio e quando desci do carro não esperei por ele para subir até meu quarto, deitar na minha cama e deixar o torpor do álcool me levar ao mundo dos sono pelo resto da tarde.

O Marido Onde histórias criam vida. Descubra agora