O carro alugado passava pelas milhares de árvores na estrada vazia. Precisávamos ir devagar, tinham placas sobre "risco de animais na estrada" a cada quilômetro, a influência humana mostrava-se ínfima naquele local quase paradisíaco, não fosse pela neblina dar um certo ar de morbidez à paisagem. Tentávamos passar o tempo, entediados pelas horas de monotonia.
— Nem fodendo.
— Tô falando sério!
— Se você fosse podre de rico você casaria e ficaria só com uma pessoa? Mas nunca.
— Sou um romântico, e gosto da solidão as vezes também. Eu não teria energia pra mais de uma pessoa. O que você faria se fosse rica?
— Eu teria no mínimo um namorado e uma namorada, mas provavelmente trocaria os dois mensalmente.
— Nem sabia que você era bi.
— Não sou, mas com dinheiro infinito tem que aproveitar tudo, né?
— Não é assim que funciona, mulher, você não escolhe virar bi de um dia pro outro.
— Vou ser rica, ué, vou poder escolher o que eu quiser.
— Se virar lésbica você tem o meu total apoio, até prefiro que você namore com alguém sem chance de engravidar!
A última fala interrompeu a nossa interação estúpida. O pai da Fernanda, o famoso "pai legal", fazia todas as vontades da filha para compensar o tempo de abandono no divórcio, nunca reclamava nem brigava com nada. Só assim para alguém concordar com essa viagem, uma cidade abandonada sem outras atrações por perto. Mas ela queria exatamente este local, mesmo precisando da viagem internacional.
— Fala aí, Fer. Tem algum motivo especial pra essa viagem? Você finalmente vai assumir que tá namorando com o Cristian?
Fernanda fez uma expressão de nojo.
— Não, pai! Credo! O Cris é um irmão pra mim. Daonde você tirou essa ideia? Aposto que se eu olhar teu histórico de site pornô só vai ter vídeo de incesto, que decepção ouvir você falar sobre isso, arruma uns fetiches normais, tipo pés.
O pai dela riu, nem tinha o que responder em relação a isso. Eu não me incomodei com a reação dela, a nossa relação realmente era apenas de amizade desde a infância, até dávamos conselhos amorosos um pro outro, sempre sem ciúmes nem nada assim. Como irmãos de outra família mesmo.
Nós 3 paramos em um restaurante antes do hotel. O garçom nos atendeu de modo estranho, como se não gostasse de clientes.
— Mais turistas, huh? Se forem visitar a cidade abandonada, não vão adiante. Não entrem na floresta.
— Por quê? — perguntei, curioso.
— Sabem que há um grande número de pessoas que viajam só pra se suicidar na floresta, certo? Não sei nem como o governo não proibiu turistas por aqui ainda.
Estranhei. Se o número de suicídios é tão grande assim, como que quando eu pesquisei sobre a nossa viagem não tinha aparecido nada? Achei que fosse o lugar mais entediante da terra, afinal o "google" só mostrava uma foto da cidade abandonada e um parágrafo de informações.
— Se acha isso por que você trabalha aqui? — Fernanda perguntou.
— Capitalismo, né? Não tinha emprego onde eu morava, e ninguém mais queria trabalhar nesse fim de mundo. Então restou pro fracassado aqui, ninguém gosta de morrer de fome. Enfim, espero que vocês 3 voltem, geralmente quem passa por aqui não volta nunca mais.
Fizemos nosso pedido, e o pai da Fernanda mostrou preocupação com a informação vinda do garçom.
— Por que você escolheu esse lugar, Fer?
— Queria visitar um lugar onde quase ninguém mais tivesse vindo, ué. Você acreditou nessa historinha de que a maioria não volta? Nem esquente, o cara de certo deve querer ser demitido então fica inventando coisas.
Dormimos no hotel, e na manhã seguinte, fomos visitar a cidade abandonada. Ela tinha uma aura opressiva e surreal, não conseguia pensar em um motivo para um local daquele estar vazio, era muito estranho ver toda aquela arquitetura fantástica sem ninguém para utilizá-la. Mais bizarro ainda era que, espalhados periodicamente, havia uma série de avisos pintados em dezenas de muros daquele local.
"Não fale o nome dela."
"Morte adiante, fuja."
"Ignore os chamados."
"Ignore, ignore, ignore."
"Ela mente."
"Não ouçam o que ela diz."
Na saída da cidade, antes da entrada da floresta, uma placa que parecia ter sido recentemente colocada, apesar de fazerem décadas de que ninguém morava ali.
"Não passe deste ponto, nesta floresta jaz o inferno de Anabel."
Voltamos para o hotel, eram mais de 30 Km dali. Na janta e nas nossas interações, Fernanda estava estranha. Ela disse várias vezes o quanto nos amava, e ela nunca foi uma pessoa muito emotiva ou que demonstrasse muito afeto. Antes de dormir, notei que ela olhava em direção à floresta, olhar vazio, sorriso no rosto. Os olhos dela pareciam que iam explodir em lágrimas a cada segundo, mas o sal úmido nunca chegava a escorrer. Antes de apagar a luz, ela abraçou-me e reiterou "Te amo, durma bem." Retribuí o afeto e fui dormir.
Na manhã seguinte, Fernanda não estava mais na cama, havia desaparecido.
Contatamos a polícia, que não parecia se importar muito. "A gente vai dar uma procurada", foi basicamente o resumo da nossa interação. Uma semana aflitiva depois, a pior notícia possível chegou. Fernanda havia sido encontrada morta, encostada em uma árvore na floresta. Não havia nenhum trauma no corpo, nenhum ferimento ou sinal de luta. O motivo da morte foi inanição. Era como se ela tivesse ido caminhar sozinha na floresta, se perdido, encostado em uma árvore e simplesmente morrido. O mais estranho é que havia um rio gigante cruzando aquele local, e vários lagos menores. Parecia impossível ela ter morrido daquele jeito sem ter sido suicídio. Não tinha como andar em linha reta por algumas horas e não encontrar nenhuma fonte de água, mas mesmo assim o motivo da morte foi "parada cardíaca por desidratação por dias sem consumir líquidos".
Havia algo errado. Eu sabia que Fernanda não sairia sozinha, nem se suicidaria. Eu precisava descobrir o que tinha acontecido com ela, o real motivo dela ter morrido. Ela não me abandonaria deste jeito.
Antes de voltar para a nossa cidade, perguntei para alguns moradores da cidade mais próxima sobre os avisos encontrados na cidade abandonada. Foi completamente inútil. Ninguém respondia nada, nem sabia quem era "Anabel". Um lampejo veio das crianças e adolescentes. Quando fiz a mesma pergunta para elas, recebi vários "Não posso falar sobre isso", "este assunto é proibido", "não diga Anabel, coisas ruins acontecem quando dizem o nome dela".
Ou seja, havia algo acontecendo ali, havia um motivo. As pessoas só não queriam falar sobre.
Após os arranjos feitos no corpo da Fernanda, voltamos para casa. Mas eu não me dei por vencido, eu não me conformava por ter perdido a minha melhor amiga. Eu comecei a pesquisar todos os dias, mas eu não achava nada sobre o porquê daquela cidade estar abandonada, sobre os avisos na entrada da floresta, sobre alguma lenda relacionada a uma tal de Anabel.
Nada.
Eu não achava nenhuma informação.
Todos os dias eu gastava horas procurando online, tentava palavras chave diferentes em vários mecanismos de pesquisa e fóruns. Tentei livros físicos, até viajei para acessar uma biblioteca de renome. Minha rotina era essa. Eu praticamente não tinha mais hobbies, passava horas todos os dias pesquisando. Eu sabia que existia algo, eu só precisava descobrir o quê.
Após 2 meses, chegando em um blog pessoal com quase nenhuma visualização, eu finalmente achei. O motivo da Fernanda ter morrido. A história de Anabel, a bruxa que morava naquela floresta.
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Lendas de outro universo
TerrorMortos que se recusam a descansar, universos paralelos, metamorfos fingindo ser crianças, e até uma pizza que trará o apocalipse. Entre nesse universo antológico e mergulhe no que existe de mais assustador, perturbador e cruel em todos os cenários p...