Dor e Fogo

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Sangue, fogo, galhos e mais galhos. Meu cérebro não entende o que está acontecendo. Galhos e mais galhos batem na minha pele, um vento forte machuca o meu rosto, mas eu só consigo encarar o machado na minha barriga.

Ela me acertou, ela me acertou, o pânico cresce em mim. Até que eu entendo o que está acontecendo: eu estou caindo da árvore. E, apesar da vontade instintiva de gritar, o terror fez um nó na minha garganta.

De repente, sinto uma enorme batida contra meu corpo, o vento para subitamente. Sinto o machado entrar ainda mais na minha carne. Quando abro os olhos, percebo que estou no chão, por muita sorte, caí de costas.

– Glammer? Glammer! – é a líder carreirista. Há surpresa em sua voz.

Glammer deve ser a menina musculosa. Eu a acertei no braço, mas todos os meus dardos estão embebedados em água venenosa, então ela provavelmente deve estar morta. Os carreiristas não deviam estar esperando que eu fosse capaz de matar algum deles, especialmente por eu ser do Distrito 12.

Dois canhões são disparados. Mason e Glammer estão mortos. Pela primeira vez na vida, eu matei. E matei não uma, mas duas pessoas.

– A Doze não morreu – comenta a líder para alguém.

– Ela não deve ter caído longe, vamos pegá-la – responde uma voz masculina.

Antes que eu pudesse escutar eles se aproximando, uma labareda de fogo gigante se forma perto de nós. O som estrondoso de uma explosão rompe meus ouvidos. Um vento quente passa por mim e vejo fagulhas no ar. Tudo é confuso, algo queima minha pele.  Quando minha audição volta, escuto pessoas passarem gritando por todos os lados.

– Corram! Corram! Estão nos atacando.

– Temos que ir.... agora, Ravena. Agora! – ordena uma voz masculina.

Escuto um grito alto de frustração.

– DOZE – a líder, Ravena, grita a plenos pulmões – Eu vou te caçar.... nem que.... o fim.... dessa arena... – ela fala mais palavras, mas não consigo ouvi-las.

É difícil prestar atenção no que acontece, meu corpo não responde bem, tudo parece lento ou rápido demais. A adrenalina começa a desaparecer, o que só significa uma coisa: dor. Todas elas parecem vir no mesmo instante: a dor do corte, da queimadura, da batida da queda.

Me assusto ao ouvir um longo grito rouco de dor, mas na metade dele acabo percebendo que quem grita sou eu. Apesar de todos os meus esforços para manter o silêncio, o grito escapou. Estou morta, outros tributos devem ter me escutado e eu não tenho condições de lutar agora. Minha mente entra em desespero.

Não. Tenho que sobreviver.

Agarro a grama ao meu redor e crio coragem para me levantar. Cerro meus dentes com força para não gritar, mas quando apoio meus braços para tentar me levantar, solto um gemido alto. Ergo a mão e arranco o machado da minha barriga. Outro gemido. Lágrimas quentes escorrem no meu rosto. É impossível evitar.

Coloco a mão sobre o corte para estancar o sangramento. Mas, na verdade, não há tanto sangue assim.

Agora entendo exatamente o que aconteceu: o machado da carreirista atingiu um galho antes de me acertar, fazendo com que só uma parte pequena da lâmina entrasse em mim. A lâmina ainda estava fumegando e a visão das chamas dançando sobre a minha barriga, junto à dor, me desequilibrou e me fez cair da árvore. Ao mesmo tempo, o fogo cauterizou boa parte do corte, diminuindo o sangramento, mas aumentando a dor.

Respiro fundo e tento me levantar. A dor é tanta que só consigo dar dois passos antes de cair. Me levanto novamente, consigo dar quatro passos dessa vez. A dor fica ainda pior.

 Cerro os dentes e caminho lentamente. Dói. Não consigo nem pensar para onde estou indo, uso toda a minha força apenas para me manter de pé. Não sei por quanto tempo continuo assim.

De repente, escuto alguém correndo. Com a mão trêmula pego um dardo.

Uma mão pequena toca o meu braço, sem aviso.

– Você de novo – diz uma voz fina.

É quando eu vejo, bem do meu lado, a menina do Distrito 3. Aquela que esbarrou em mim na floresta.

– Quem fez isso com você? – ela encara meu corte. O modo como ela segura meu braço me faz relaxar um pouco, ela apenas segura, não há força ou ameaça em seu gesto.

– Carreiristas – minha voz quase não sai. Continuo tensa e segurando o dardo, como ameaça.

– Você acha que vou te matar agora? – a menina pergunta, seu olhar não sai do meu corte.

– Não.

– Não?! – ela sorri e me encara. Sorriso não era a reação que eu estava esperando.

– Você já teria me matado se quisesse – concluo. Ela devia estar me observando há algum tempo antes de se aproximar e, se fosse do seu interesse, teria me dado um golpe por trás – Você nem pegou a sua faca - digo por fim, encarando de volta.

– Eu perdi a minha faca – ela dá ombros – Mas peguei coisas mais valiosas em troca.

Percebo que ela tem muito mais machucados do que quando a encontrei. Seu cabelo está chamuscado e um pedaço da sua camiseta está queimado junto com a pele.

A garota, de repente, puxa meu braço. Dou um passo para trás.

– Quero te ajudar – seus olhos enormes, por detrás da lente dos óculos, parecem sinceros. Talvez ela esteja blefando, mas é a melhor chance que tenho no momento, já que ela não me matou até agora, apesar de ter tido chances. Faço que sim com a cabeça.

Ela segura minha mão com força, passa o meu braço pelo seu pescoço e me apoia. Seguimos andando. Minha maior dificuldade é não soltar gemidos ou barulhos enquanto caminhamos, mas é mais fácil me mover com ajuda e eu preciso parar apenas poucas vezes.

– Eu conheço um esconderijo – ela comenta no meio do silêncio – Estamos quase lá.

Andamos por muito tempo até chegarmos numa caverna, talvez fosse a mesma que eu encontrei depois do banho de sangue, não sei dizer.

Até agora o meu sangramento não havia estancado. Minha blusa está empapada de sangue, assim como minha mão e meu braço. Caio no chão assim que entro. A dor vem em ondas, inundando tudo dentro de mim.

– Posso ver? – a menina pede enquanto mexe em sua mochila, procurando por algo. Quando ela se vira, eu ainda estou segurando minha barriga com força – Preciso ver para poder te ajudar – ela me encara severamente.

Solto o meu braço. Um tremor percorre o meu corpo quando ela coloca a mão na minha barriga para ver o corte e um gemido escapa enquanto ela puxa as beiradas da minha pele. Sinto como se facas passassem por dentro da minha pele.

– Você é sortuda – ela me encara, surpresa – Só precisa de alguns pontos. O fogo cuidou da maior parte do corte.

– Não tem como dar pontos aqui – arquejo, tonta pela dor.

A garota, então, pega uma maleta branca e abre um enorme sorriso. Pela alegria que seu sorriso irradia, consigo ver o quanto ela é jovem. É o primeiro sorriso sincero que vejo desde a Colheita.

– Roubei isso da Cornucópia, não é incrível? – ela parece orgulhosa de si mesma – O lado bom é que você não vai morrer hoje, o lado ruim é que esse kit médico não tem remédio pra dor.

A dor já está ruim o bastante, não consigo imaginar ela ficando ainda pior. Sinto a palma das minhas mãos suarem.

– Me diga quando estiver pronta – ela se vira e continua a mexer nas bolsas.

É melhor acabar com isso de uma vez. Respiro fundo algumas vezes e a chamo.

A calma da menina em lidar com a situação me surpreende. Ela parece uma enfermeira profissional e prepara a linha rapidamente.

Fecho os olhos antes da agulha entrar na minha pele.

Jogos Vorazes: o 2º Massacre Quaternário • Stay AliveOnde histórias criam vida. Descubra agora