Fita 1 - Lado A

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A sensação de vazio expandiu-se, saindo em nevoeiro, desmanchando-se em frescor metálico. Quando dei por mim estava andando.

Não via céu, mas de alguma forma sabia de sua existência. A pressão do cosmos sob a minha cabeça.

Vagava sem destino aparente, quase flutuando. Meus pés subiam e desciam novamente, entrando em contato com o nada.

Não tinha um chão para olhar, muito menos para sentir. Era difícil conseguir enxergar através do breu que repousava sob meus olhos.

Busquei em volta a procura de tudo e ao mesmo tempo nada em específico. Qualquer coisa, pensava, qualquer coisa serviria.

Persisti mais algum tempo, ignorando a sensação de formigamento após completar quatro passos precisos. Contava cada caminhar desde que comecei a perceber que saia do lugar.

Não só saia, como tinha plena consciência disso.

No entanto não conseguia parar, as pernas trabalhavam sem que eu sequer pensasse em movê-las. Uma força as puxava.

Entrei em um estado inerte. Há determinado ponto ameacei crer ser essa minha punição pelos crimes que cometi.

Andar eternamente num limbo, sem controle, sem escolha. Sem fim.

Qualquer merda não seria o suficiente. Nada terá poder para trazer o arrependimento em meu peito, nada assombraria minha mente.

Cada memória já tinha seu demônio para lidar. Fui perturbado durante anos em terra, não existia nenhum monstro pior do que o qual fui criado para ser.

Uma súbita pontada invadiu minhas costelas, bem abaixo do peito.

Quase permiti um suspiro me escapar, mas contive a surpresa e engoli. Esconder dores tornou-se uma habilidade invejável, a ponto de nem eu mesmo notar quando estou verdadeiramente sofrendo ou apenas atuando.

Luzes projetaram-se ao redor, formando flashs luminosos que se manifestarem em construções. A escuridão deu espaço para lugares familiares, áreas comerciais uma ao lado da outra.

Prédios subiam com placas grandes neon na fachada, revelando letreiros e suas letras garrafais. Chamariam atenção até mesmo de um senhor cego ‒ seriam as responsáveis por cegá-lo, devido ao contraste luminescente das lâmpadas.

Levo a mão na altura do rosto, fugindo da intensidade das luzes. Invadiam meu espaço e se espalhavam como uma maldita gripe.

Compararia o amontoado infernal com os raios luminosos de Seul. Principalmente o centro e a parte comercial que funcionava do amanhecer até o anoitecer.

O Sol nascia, estavam arrumando as coisas e, em seu último sopro, permaneciam lá. Trabalhavam condenadamente, presos num cotidiano entediante e miserável.

Pagar as dividas, gastar com contas e o mínimo de comida para sobreviver. Nunca param, apenas na hora que seu último suspiro é arrancado.

Pergunto-lhe, isso não é o mesmo que castigo? Um loping, daqueles obrigados a vivenciar no inferno.

Tinha plena noção de que não pertencia a esse sistema contínuo de punição. Esse servia para as pobres almas arrependidas, incapazes de tornarem-se plenas antes da própria morte.

Meu único arrependimento fora não terminar com aquilo que comecei. Dei fim ao Anton, queridinho amedrontado da Pavel.

Faltou matar os pais do Anton. A porra da organização responsável pela ruína de crianças inocentes, autora dos livros de horror ‒ a diferença é que seus monstros eram reais e nem se esforçavam para escondê-los dentro de armários.

Você é minha redenção - Ryu SioOnde histórias criam vida. Descubra agora