Capítulo 1

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     Era o final do século. Do milênio. Enquanto alguns seguravam seus fôlegos achando que isso de alguma forma iria mudar a merda da vida deles, outros desgraçados se matavam aos montes. Se jogando de prédios como se fossem trampolins. E foi com esse assunto que Andrei chegou naquele dia no ensaio.

— Merda. — Ele bateu a porta trancando o ar frio do lado de fora, como se também pudesse prender o sopro de morte que vinha grudando nele cada vez mais nesse dezembro. Tirou a neve dos ombros. — Outro suicídio, a rua estava uma loucura.

— Isso nem é mais novidade. — Calen falou, com um sorriso contido nos lábios.

— Nesse ritmo não vai sobrar ninguém nesse país. — Jez revirou os olhos, ansioso para ensaiar.

Mas até então, ele sempre estava ansioso para ensaiar. O primeiro a chegar e o último a sair.

O que Láquesis poderia ter feito melhor?

Andrei encarou Jez procurando traços que ele estava limpo. Seu cabelo castanho estava no rosto e não preso para trás como fazia quando focado. E seus olhos estavam límpidos no tom de castanho claro e não pretos.

Ele parecia bem, a cara amarrada significa que ainda não tinha usado nada.

Jez faria qualquer coisa para se deixar acordado e ensaiar mais. Tudo isso para que? Ele nunca teve coragem de ir em um teste. E era triste ver Jez trabalhando em clubes noturnos somente para ter a chance de dançar.

Calen alongava as pernas. E ele ainda mantinha o sorriso no canto do lábio. Ok, eles estavam bem hoje. O ensaio iria render.

Andrei jogou o casaco no canto, a bolsa e o chapéu indo juntos e foi para o meio.

Quando Jez Amani percebeu que todos estavam em posição contou.

— 5,6,7,8...

E foi assim pelas três horas seguintes. Sem descanso, música atrás de música. E Jez não parecia nem perto de parar.

E quando Calen tropeçou, a única coisa que Jez perguntou foi se ele ainda podia dançar.

— Sim, Jez. Eu posso.

Eles eram o AkJez até Calen aparecer. Com seus shorts vermelhos no começo naquele verão, sua pele marrom e cabelo queimado, ele era todo risadas abertas e talento. Muito talento.

Às vezes eu me perguntava se Jez não tinha se apaixonado por isso. Pela força brutal com a qual Calen dançava, a rapidez que decorava uma nova coreografia. Porque Calen era arte da cabeça aos pés.

Quando eu perguntei isso para Eros ele riu mas não respondeu.

Até onde eu sei, talvez nem fosse paixão. Somente uma vontade louca de consumir e destrinchar cada pedacinho da alma de Calen. Ver do que ele era feito, entender o que lubrificava e fazia aquela máquina funcionar.

Mas isso era antes. Agora Calem mais sorria de deboche e só ria quando Jez estava chapado e Andrei bêbado demais.

Era o que acontecia quando Jez passava pela sua vida. E Calen era viciado naquilo. Sua própria droga, sua forma de auto destruição. O ópio que prometiam depois de um longo dia de trabalho. Jez Amani.

Calen era um masoquista de merda viciado em um drogado que só se importava com a única coisa que nunca o iria amar de volta. A dança.

De qualquer forma passei tempo demais olhando esse trio em particular. E me perguntava, encantada, como poderiam meros seres humanos equilibrarem tanta loucura e continuarem aqui.

Minha irmã diz que eles mereceram o que aconteceu, mas eu ainda sim, me prendo a essa história.

Esse quarteto, que nem chegou a se batizar, como um tipo de premonição que não iria mesmo durar, acabou antes mesmo do outono começar.

Jez chegou, com o raiar do sol em suas costas, abriu as portas e quando estava prestes a começar o alongamento viu um bilhete no espelho.

'Fui aceito. Tô indo atravessar os oceanos. Boa sorte. #Akio'

Aquelas palavras simples o machucaram e naquele dia Jez e Andrei perderam a cabeça procurando a solução no fundo de uma garrafa de vodka, bêbados o suficiente para fazerem uma besteira.

Essa era a terceira traição de Andrei.

Mas a que mais doeu em Zane.

Vou falar disso mais para frente.

Andrei havia feito anos de ballet na infância, então era o que tinha a melhor técnica. Mas Jez era o que dançava melhor. E Calen era quem nasceu com o dom. Sem a cola que Akio era, eles não sabiam mais como fazer aquilo funcionar.

— Andrei! De novo! Direita, esquerda, direita. — Calen falou como quem xinga.

— Tá' falando como se não fosse você que está fora de sincronia. — Jez revirou os olhos.

Quando eles começam a brigar, Andrei cantarola o ritmo que eles dançam exaustivamente, achando graça, rindo. E eu estava lá, sentada do lado dele rindo junto porque era aquele o motivo de eu ter passado esse tempo ao lado deles.

Jez bufou e foi se alongar na frente do espelho.

— Vai buscar o almoço, — Disse sem apontar. Jez parecia não se importar com quem atendesse sua ordem, mas assim que Calen se levantou ele o cortou — Você não, da última vez trouxe frango frito e não podemos comer nada gorduroso, o Andrei vai.

Calen não questionou, só olhou para o Andrei por cima. Andrei sabia o porque, ele sozinho com dinheiro era perigoso demais.

— Eu estou sem beber. — Andrei tentou tranquilizar.

Ele não estava.

A semana de Andrei tinha sido difícil, Zane e ele viviam em pé de guerra, até que ela saiu de casa e agora Andrei chorava a noite toda esperando ela voltar.

Mas eles não sabiam disso, não naquela época.

Então acreditaram.

Calen andou devagar, muito consciente de cada passo que dava em direção à Jez e passou os braços em sua cintura. Mas ele segurou seus pulsos antes que se tornasse um abraço.

— O que você pensa que está fazendo?

— Aqui está vazio agora, bem que podemos aproveitar. - Calen mesmo enquanto falava já sabia que a resposta seria negativa.

Jez não estava com um bom humor, então nada ia acontecer. Hoje ele só teria uma coisa em mente. E essa coisa seria treinar.

Calen se virou e voltou a sentar bufando. Bufar era bom, ele não precisava usar palavras e nem esconder, por trás de um sorriso, o calor da vergonha da rejeição. Ele sabia que com Jez era sempre uma aposta de cinquenta por cento.

Eu sempre me pego divando, especificamente, sobre essas minhas lembranças que estou lhe contando. Me chamo Melinoe, essa é a história de como um trio virou uma carreira solo.

1999Onde histórias criam vida. Descubra agora