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Jota Peres havia aparecido na vida de Vica do mesmo jeito que uma assombração, de forma silenciosa e sorrateira. Ela não se lembrava ao certo da primeira vez que o viu, mas um dia ele simplesmente estava lá.

Num instante corria descalça na areia úmida da beira da lagoa com o primo Vaguinho, e no outro Jota lhe dizia que ela era chata demais e que os dedos de Vica eram tão separados quanto os de um sapo. Ela rebatia, gritando sobre como os joelhos de Jota eram enrugados a ponto de parecer um bebê recém nascido.

— Bebês recém nascidos são bonitos — Jota retrucou. — Então isso foi um elogio.

— Nem todos... você por exemplo devia parecer um caroço de manga.

E então o garoto cruzava os braços, o que era o detalhe mais comum de Jota Peres quando ele ficava irritado.

— E você devia parecer um brócolis estragado.

A primeira briga feia foi aos 8 anos. O campeonato da igreja de Nova Luz era simples, estourar balões coloridos com os pés. Aquilo foi perto do Natal, a celebração do nascimento de Jesus, mas que infelizmente virou uma confusão.

— Você não vai ganhar — ele disse, empinando o nariz.

— Quem foi o idiota que falou isso? — ela perguntou, dando de ombros 

— Eu... Espera? Você me chamou de...

— Chamei, idiota!

Assim que o apito soou eles pisaram nos balões com tanta força que os estouros se assemelhavam a tiros de escopeta. Quando a competição estava perto do fim, com apenas um último balão sobrando para cada um, Vica foi a responsável por empurrar Jota. O garoto a agarrou enquanto caía, e desse jeito despencaram com as bundas no chão, ficando envergonhados de ouvir os risos das outras crianças.

Vica e Jota se entreolharam com ódio e viraram os rostos em direções contrárias no mesmo segundo.

Ela sabia que estava sentindo ciúmes, mesmo que tentasse a todo custo dizer que a raiva era por Jota ser um chato. Sim, ele era muito chato, mas será que ela também não estava sendo ignorante demais?

Vaguinho quase nunca se metia nas intrigas. Ele era mais pacífico, e o máximo que fazia era dizer para que se acalmassem. Vica odiava isso, como ele não podia defendê-la? Ela era sua prima!

Ao entrarem na adolescência, um pouco antes de Vica se mudar para a cidade grande com a mãe, as coisas pioraram. Naquela época a garota já era uma estrela, era normal vê-la em rodinhas pela hora do recreio, o violão em mãos era o maior responsável por fazer as pessoas cantarem junto. Nas sextas, os dias de entoar o hino nacional, Vica fora  chamada repetidas vezes para ser a primeira voz. As pessoas a amavam... até Jota notar que talvez não tivesse uma voz tão feia assim.

Começou com pequenas notas soltas pela sala de aula, e Vica precisava concordar que o vibrato do garoto era realmente impressionante. As rodinhas feitas ao redor de Vica começaram a diminuir de quantidade, até que alguns meses depois sobraram apenas alguns amigos fiéis — amigos esses que Vica não fazia a mínima ideia se ainda moravam em Nova Luz. Os hinos de sexta-feira não tinham mais a voz melodiosa dela, ao invés disso, o tom para lá de grave de Jota tomou o seu lugar.

Ele era como uma pulga, e Vica se sentia um cachorrinho indefeso. Tudo isso era estressante, pior do que deixar a torrada cair no chão com a parte da manteiga para baixo.

As pessoas diziam que o olhar de Jota era hipnotizante, que as piscadinhas que dava enquanto cantava podia fazer qualquer um surtar de felicidade. Vica nunca acreditou nisso, até Jota piscar para ela com a roupa amarrotada de barman. E sim, ela de fato sentiu vontade de surtar, mas obviamente não podia demonstrar.

Na Sola da PaixãoOnde histórias criam vida. Descubra agora