Capítulo Três

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Nesta noite, sinto uma atmosfera diferente, como se eu fizesse parte de um grande conto romântico. A brisa sopra em meu rosto e eu jogo minha cabeça para trás, respirando profundamente.

A areia está grudada em minhas pernas e eu limpo com a própria toalha de praia, deixando que os minúsculos grãos sejam levados pelo vento. Vou caminhando até a subida da colina, calmamente. Percebo que alguns casais estão em alguns pontos da orla, apreciando a noite e, é claro, fazendo o que eu nunca fiz: namorando. Criançona. Mas e daí? Os garotos são bobos, desengonçados e implicantes! Quem precisa deles?

Estou nessas divagações quando avisto um carro moderno, parado em frente ao portão da minha casa. De quem é esse veículo estacionado? Uma visita? Nós sequer moramos aqui!

Meu corpo paralisa e minha mente faz uma viagem até o lugar mais profundo do meu íntimo. Uma espécie de formigamento começa pelos pés, sobe pelas minhas pernas, passa pelo meu ventre, chega rapidamente ao meu peito, arrepia meus pelos. Quando chega ao meu rosto, sinto-o ferver. A sensação retorna para o meu peito e, lá... explode... em mil fragmentos! Depois, se espalha em multicores, cheiros, sabores e sons por todo o meu ser. Dentro da minha cabeça, a imagem de Jace soa como um alarme e faz disparar o meu coração em batidas descompassadas e em um ritmo absurdamente acelerado. Estou tremendo e temo não ter condições de dar um passo adiante.

Procuro respirar fundo e controlar minhas pernas. Respiro profundamente de novo. Uma. Duas. Três vezes. E se não for ele? Clarissa, como você é estúpida e patética! Dou um tapinha no meu rosto e pisco com força para espantar aquela sensação poderosa que se apossou de mim. Sonhadora. Ridícula. Tolinha.

Volto ao mundo real, mas meus batimentos ainda não me obedecem. Aproveito que as pernas estão colaborando e dou passos lentos em direção aos fundos da casa. Ouço vozes vindas da sala, mas não quero que ninguém perceba a minha presença até que eu me certifique quem é a visita misteriosa. Abro a porta e Pingo vem me receber abanando o rabinho. Agacho para acariciá-lo e evitar que ele comece a latir e denuncie a minha chegada.

Dot não está na cozinha, o que me faz supor: ou já terminou o jantar e está no quarto dela ou também está na sala por causa da... visita. Ouço a risada do meu pai. Alta, descontraída. Então, não se trata de uma visita formal! É realmente alguém conhecido. Continuo caminhando bem devagar, tentando não fazer nenhum barulho e me escondo no corredor que me separa da sala por uma porta. Por sorte, ela está entreaberta, mas eu tenho que me esforçar um pouco para olhar pelo vão, sem que ninguém me veja.

Agora escuto com toda a clareza. Fecho os olhos. Não sei mais quem eu sou. Perco o controle do meu corpo que volta a explodir em mais mil fragmentos de emoções. O som da única voz que meus ouvidos são capazes de ouvir, acende uma luz no fim de um túnel muito, muito escuro. Caminho por ele, até que alcanço a luz. Essa voz ainda me leva, me chama. Ouço minhas risadas, a sensação de cosquinhas na minha cintura... Venha, minha garotinha, vou contar uma história para você dormir! Eu levanto o braço e tento tocar aquele rosto que segura a menina pela mão... Mas minha mão não o alcança. Agora o dono da voz está empurrando a menina num balanço e logo depois, compra para ela, um saco de doces. Você canta para eu dormir? Claro que eu canto! Espere que vou pegar o violão... Venha minha garotinha, vou cantar até você dormir...

Há uma foto envelhecida de um bebê no berço e um garoto de treze anos velando seu sono. O seu sorriso é tão largo que é possível sentir toda a sua alegria de ter aquela menininha como seu brinquedo novo. A luz do túnel ameaça se apagar. A voz do homem é grave, melódica. Sua risada volta a me chamar. Você sempre vai ser minha garotinha e eu sempre vou te amar.

Vejo uma casa ao lado da minha. Nela, há pais amorosos e orgulhos de um único filho homem com forte inclinação para a música. Mesmo assim, com os pés no chão e com medo de não realizar seu sonho, o jovem faz faculdade de Educação Física e concilia as duas profissões. À noite, o professor dá lugar ao músico. Muitos flashes de máquinas fotográficas ofuscam a luz do túnel em que eu estou. As canções do rapaz fazem sucesso na voz de outros cantores e isso é tudo o que ele havia sonhado. Publicidade. Rádio. Contratos. Estúdios. Agências. Carreira Internacional. Você sempre será minha garotinha e eu sempre vou te amar. Uma explosão no céu. Vejo sonhos espatifados junto com pedaços de avião. Os pais daquele jovem, não existem mais. Não chora! Eu estou aqui com você! Casa vendida, objetos de valor levados para fora do país. Venha minha garotinha, vou cantar até você dormir... Volte, Jace! Volte para mim.

De repente, a luz do túnel se apaga e tudo escurece. Clarissa! Clarissa! Sinto umas sacudidas no braço. É Camille me olhando assustada.

– Clarissa, o que houve? – está me sacudindo mais uma vez. – Que cara é essa? Viu assombração?

Venha minha garotinha, vou cantar até você dormir...

– Eu... Eu.. – eu estou em choque.

Você sempre vai ser minha garotinha e eu sempre vou te amar.

– Você está bem? – Camille pergunta realmente parecendo preocupada.

Oi? Preocupada? Minha irmã que-só-olha-para-o-próprio-umbigo? Não, realmente eu não posso estar em meu perfeito estado. Devo estar tendo alucinações. Quero voltar para o túnel. Preciso voltar, me deixe voltar!

– Sua idiota, vai ficar aí parada? – volta ao seu comportamento habitual. – O Jace está aí! – dá o seu melhor sorriso de devoradora de bons partidos.

Minha irmã literalmente não se enxerga! Mas eu não estou no meu melhor momento para formular apelidos nem comentários maldosos sobre Camille. Meu corpo ainda não está totalmente recuperado do transe e eu preciso sair de onde estou. É nesse momento que minha irmã-sem-noção resolve me pegar pelo braço, me arrastando até a sala.

Ai. Meu. Deus! Um buraco, por favor! Um buraco pode se abrir agorinha? Por favor! Por favor! Eu juro que nunca mais te peço nada, Deeeeeeus!!!

Nossa entrada súbita chama todos os olhares da sala em nossa direção. Sinto meu rosto queimar como brasa. Minhas mãos procuram desesperadamente um lugar para se abrigar. Jace me olha. Confuso. Das duas uma: ou ele não esperava que a menina bonitinha que viu pela última vez tivesse crescido mais um pouco... Ou que essa mesma menina não fosse mais bonitinha e tivesse se transformado nessa nerd descabelada a sua frente. Burra. Burra. Burra. Eu sentia vontade de dar um soco na minha própria cara. Estúpida!

Faço uma análise mental rapidamente de como deve estar a minha aparência.

Macacão larguinho... Ok, cabelo todo bagunçado... Ok. Rosto pálido demais, óculos de armação ridícula e aparelho nos dentes, cujo tratamento não acaba nem sob ameaça à dentista, Ok! Perfeito! Ficha completa de uma idiota. Fim.

Esse romance pode terminar aqui.

Não consigo mais suportar o olhar dele sobre o meu. Minha boca aberta pelo impacto tem dificuldades para fechar. Será que escovei os dentes direito? Ah, o que importa! Ele já viu mais do que o suficiente para me achar a garota mais feia e mal vestida da face da Terra!

– Cla... rissa... – Jace diz com o olhar atentamente pousado sobre mim.

– Oi. – digo com completa timidez. Im.be.cil!

– Clarissa! Você... – esboça um sorriso, que aos poucos, vai se iluminando e enchendo a sala, como sempre. Ele está feliz em me ver. Dá para sentir isso no rosto dele. Ele está feliz em me ver!

Ao fundo, eu ouço risadinhas da minha família. Não sei se estão sinceramente felizes pelo reencontro ou se estão mesmo é debochando da minha total falta de modos.

De repente, Jace abre os braços e me pega com firmeza pela cintura, me jogando no ar. Dou um grito de susto e abro um sorriso saudoso. Ele me roda e me coloca no chão, já me aconchegando em seus braços.

Você sempre vai ser minha garotinha e eu sempre vou te amar. Eu sempre vou te amar! Eu sempre vou te amaaaaaar!

Sinto as batidas do coração dele de encontro ao meu ouvido. Ele me abraça apertado, visivelmente contente.

Sem que eu espere, Jace me solta. Percebo uma seriedade e um distanciamento que não senti há poucos minutos. Por quê? Eu não sou mais a sua garotinha? O que o incomoda? Eu não posso mais ser carregada no colo? Por que eu cresci, não posso mais ser amada por ele? Volte, Jace. Volte para mim!

Sinto meu rosto queimar. Tomo um tapa invisível desse olhar que tenta parecer indiferente. Dói. As coisas mudaram. Eu não sou mais uma garotinha. A linha de nossa amizade amorosa é muito tênue. E ela se rompeu porque eu cresci. Eu cresci!

O patinho feio não tem mais ninguém. Um espelho em minha mente se parte em milhares de pedaços e eu nunca mais quero me olhar. Tomo coragem e corro para longe da sala, sem olhar para trás.

Um amor quase impossível Onde histórias criam vida. Descubra agora