Açúcar e Docinhos

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- Já que aceitou, vamos para o assunto mais importante, Sam. Papai Noel é seu pai. Sei que não me sentei com você assim que cheguei à sua casa, mas o tempo é curto. Temos dias para te ensinar como se portar e como fazer a magia do Natal acontecer. Eu eu sei que você pensa que está sob efeitos de drogas, mas não é isso o que está acontecendo. Você está mesmo no Polo Norte. Uma hora, você vai perceber isso. - A mulher duende disse, enquanto me olhava com aqueles olhos de duendes e seu nariz enorme, com suas orelhas peludas...
- Ah, sim... Claro. - Concordei pra não falar que não acreditava naquela lorota toda. Afinal, ela mesma disse que sabia que eu não acreditava. Não tinha porque eu afirmar qualquer coisa sobre isso. Ela sabia. Meu foco era olhar Mon, o pedacinho de céu que caiu pra ser meu mel, meu docinho de leite de compota com côco e morango. Me lambuzaria nesse docinho de meu Deus.
- Pare de olhar Mon! - A duende me assustou e eu fiquei tão assustada e envergonhada que sei que fiquei com meu rosto vermelho vivo. Ela sabia o que eu pensava e estava me entregando para a menina. Mesmo sabendo que era uma invenção da minha cabeça, ainda era vergonhoso ser exposta dessa forma. Eu tinha o direito de ter meus pensamentos só pra mim. - Me desculpe, eu não consigo controlar meus poderes de ler pensamentos. Mas você precisa se concentrar. O correto seria você passar meses treinando. Seu pai, mesmo após muitas décadas, treina todos os anos. Seu avô treinava. Seu bisavô treinava. É treino todos os anos porque as gerações mudam e é preciso se adaptar a tudo, saber o que deve-se dar para as crianças e como se comportar pelo mundo.
- Eu nunca ganhei nada. Nunca vi pessoas pobres como eu ganhar algo. - Eu estava irritada e não me importava mais com nada. Eu queria xingar aquela duende maldita por me expor e queria que minha cabeça parasse de me humilhar daquela forma e me deixasse dormir em paz. O trabalho na loja de manhã seria longo. Eu precisava trabalhar pra sobreviver e não viver em uma fantasia tosca.
- Nós sabemos que o mundo capitalista é cruel. Até mesmo aqui no Polo Norte temos esse conceito de que todos merecem a mesma oportunidade. Papai Noel ajudou a criar o comunismo. Por isso, o comunismo é vermelho. Vermelho da cor do Papai Noel. Só que, como existe um sistema capitalista no mundo, você deve saber que seria estranho dar as mesmas oportunidades para todos. Papai Noel tentou criar o comunismo. Marx era barbudo porque ele era Papai Noel. - Porra, minha cabeça já tava doidona real! Caralho, eu queria apenas dar cabeçada na parede pra acordar daquele pesadelo porque não precisava de discursos do tipo ditos no Twitter sobre capitalismo e comunismo. Que loucura é essa que Marx era Papai Noel?
- Vey, na boa... Acho que cheirei pó em vez de fumar um. Colocaram pó no meu bagulho. Pescoço, eu te odeio! Mó brisa torta... - Comecei a andar pra lá e pra cá com uma cara de sofrimento agudo porque eu só queria acordar e sair daquela maluquice. Mineiro fala pó pô pó quando é com café. Pescoço deve ter entendido que era pra colocar pó nos prensado.
- Sam, acorda! - A duende gritou e eu olhei pra ela assustada.
- Que isso, doida? - Falei sem acreditar que aquele bicho tava gritando comigo do nada. Mon olhava pra mim com um pouco de pena. Achei que não precisava daquilo também.
- Tô pensando que vou precisar te dar um choque de realidade. Não temos tempo. - A duende bateu as mãos e me vi aparecendo na sala da casa de minha mãe. Era uma casa simples que qualquer mineiro tem. Ela ainda tinha aqueles pinguins em cima da geladeira. Tinha ganhado da patroa dela. Minha mãe gostava de ganhar coisas e guardava as que gostava, passava pra frente as que não gostava. Não tinha televisão ali. Só um rádio que ela usava pra ouvir os cânticos da igreja. O Silas Malafaia proibia aos fiéis de ter televisão, mas podia ter pra ver ele. Só ele.
- Viemos ver sua mãe. Ela vai ter que te contar a verdade. Aquela mulher e suas crenças malucas te criou longe da verdade. Papai Noel quis dar uma chance ao amor quando viu aquela moça evangélica e casta. Ele pensou que poderia fazer aquela moça abandonar aquelas crenças e construir um Natal melhor para todo mundo, mas ele foi impedido de ter contato com você. O erro dele foi se abrir com a pessoa errada. - A duende saiu andando pela casa e eu fiquei parada rindo. Até que ela voltou com minha mãe. Arrastando minha mãe com suas mãos pequeninas.
- Me solta, Yuki! - Minha mãe olhava para baixo com raiva.
- Conte pra ela. - O ser apontou para mim e eu fiquei olhando aquela cena sem saber se continuava a rir ou se pensava que minha cabeça estava exagerando demais, o que mostrava que eu precisava de ajuda porque devia estar tendo uma overdose.
- Não! - Minha mãe fingiu que não me via. Era como se eu nem estivesse ali.
- Conte! - A duende insistiu.
- Não me faça fazer... - Minha mãe falou com raiva. Naquele tom que ela falava comigo quando eu não queria obedecer.
- Não me faça, você! - A duende olhou pra minha mãe de igual pra igual. As duas ficaram se encarando com os olhos faiscando de ódio.
- Eu odeio você e tudo o que você representa. Blasfêmia contra Deus! Idolatria! Só Jesus existe! Só Deus existe! Vocês não vão levar minha filha. Ela é minha! Deus protegeu ela de vocês. - Minha mãe falava naquele tom que evangélicos falam e meu coração começou a bater forte porque eu sempre quis saber quem era meu pai. Minha mãe nunca me contou. Ela não dizia nada ou dizia alguma mentira pra enganar crianças ingênuas.
- Do que está falando? - Não me contive.
- Vá para o quarto! - Minha mãe falou comigo como se eu fosse uma criança que cometeu alguma arte.
- Me fala! - Eu exigi.
- Fale pra menina! Se você ama sua filha, deixe ela escolher os próprios caminhos. Jorge está morrendo. Ela tem o direito de conhecer o pai antes da morte. Jorge tem o direito de ter a filha ao lado dele nesses últimos dias de vida. - A duende falou de uma forma que eu só senti vontade de chorar. Se aquele era meu pai, eu tinha o direito de saber. Mães não têm o direito de retirar dos filhos saber quem são seus pais. Mesmo que o pai seja ruim, é bem melhor saber que o pai é ruim e odiar aquele homem do que viver a vida toda com o vazio de não saber de onde veio. Somos nós que devemos ter o direito de escolha sobre como queremos nos sentir sobre nossos pais e não nossas mães. Ainda mais se somos adultas.
- Não! - Minha mãe falou com frieza.
- Está vendo, Sam. Acho que vou o suficiente. - A duende me olhou de uma forma que me fez titubear sobre eu estar drogada ou não.
- Deixe minha filha! Ela é de D... - E a realidade mudou. Eu apareci outra vez no quarto. Mon estava sentada na cadeira ao lado da cama e apenas me olhou.
- Sua mãe vai ter que conviver com o fato de que as escolhas dela te impediram de ser a filha de quem é. Seu pai passou a vida te procurando. Ela sabia que você não se apegar ao Natal te impedia de ter qualquer contato com seu pai. O Papai Noel só pode chegar perto de quem acredita nele. - A duende me olhava de baixo e eu não sabia o que pensar.
- Eu não acredito em Papai Noel. É idolatria. - Eu falei sem pensar porque era o que eu fui ensinada a acreditar.
- Você pode não acreditar no Papai Noel, mas ama o Natal. O seu amor não é pelo nascimento de Cristo como a religião cristã manda que os fiéis amem. O seu amor é pela beleza do Natal. O que a faz gostar do que o Papai Noel representa. E foi isso o que te trouxe de volta para nós. Olhe, essa é você com meses. Você no colo do seu pai, pouco tempo antes de sua mãe partir. Ela poderia ir para qualquer lugar do mundo. Ela foi para o Brasil, um lugar quente. Eu fiz a realidade parecer uma praia porque queria que se sentisse em casa quando viemos pra cá. Percebi quando sua cabeça achou que era loucura e mostrei a realidade correta. Sua mãe te impediu de ser filha do seu pai. Ele sempre amou você. - Ela me deu a foto e eu vi a pequena eu em cima da perna de um homem com barba preta. Aquela era eu e aquele era meu pai. Lágrimas escorreram pelos meus olhos sem eu conseguir me controlar. Eu não sabia se deveria ou poderia acreditar mesmo naquelas coisas ditas, mas o meu coração queria acreditar que meu pai sempre quis me ver ou que ele me pegou no colo e me olhou sorrindo igual naquela foto por muitas vezes. Acho que todo mundo que não tem pai sonha em ter isso. Um pai. Mesmo se não for o pai de sangue, mas um pai que queira ser seu pai. Pode ser um avô, um tio e até um irmão, um padrinho. Ter aquela figura paterna toca o coração de quem não tem. E aquilo tocou meu coração. Aquele homem naquela cama, sendo uma invenção da minha cabeça ou não, era meu pai. Eu tinha um pai. Eu não era uma mulher com uma certidão de nascimento ou uma identidade com o nome do pai em branco. Eu tinha um pai.
- Vamo, Mon. Vamos deixar ela um tempo com o pai. Eles merecem esse tempo unidos. - A duende chamou e Mon saiu com ela. Eu não sabia o que dizer. Apenas olhei aquele homem deitado na cama. Já era um senhor. A barba já estava grisalha. Daquele tipo de barba onde tem pelos brancos, cinzas e pretos misturados. Era uma barba espessa. Estava coberto por um cobertor de pele. Dormia como se sonhasse com um mundo bonito. Era meu pai.
- Oi, pai. - Eu falei após um tempo olhando e decorando cada parte do rosto dele. Eu olhava e tentava encontrar naquele homem qualquer sinal de mim ali. Ver que me pareço com ele, mas eu sou mais parecida com minha mãe. As pessoas que não são amarelas sempre pensam que todos os amarelos são iguais. Não somos. Temos traços diferentes que nós reconhecemos com facilidade. Sabe? E após um tempo, resolvi conversar com a duende sobre as coisas pra entender melhor as coisas. Para que eu me sentisse mais preparada e com mais consciência do que eu deveria fazer.
- Poderia me contar? - Eu perguntei assim que abri a porta e vi que ela estava ali esperando. Mon não estava lá. Devia ter ido dormir ou tomar banho, talvez comer.
- Vamos para o seu quarto. Boris vai cuidar do seu pai. - A duende saiu andando por entre as caixas e eu fui atrás dela, enquanto via os seres andando pelo lugar sem nem me olhar ou perceber minha presença. Até que ela encontrou outra porta. Essa era preta e tinha apenas dois enfeites. Um pequeno arco-íris e um símbolo do Corinthians. Olhei e sorri porque quem preparou aquilo foi pensando em mim, mesmo. Se tem uma coisa que me alegra é que eu sou lésbica com orgulho, mesmo minha mãe não aceitando e que eu amo o Corinthians.
- Vocês já tinham esse quarto preparado? - Eu sorri mais ainda quando abri a porta e vi que ele estava preparado igual ao meu quarto, só que mais bonito ainda. Era como se eles conhecessem tudo o que eu gosto.
- Ah, não! Nem tinha como! Esse era seu quarto, mas ele está a vazio esperando você voltar. Eu mandei Nop, o duende, ir para seu quarto e ver o que você gostava. Ele providenciou tudo. - Ela deu de ombros, enquanto eu olhava a árvore de Natal branca com bolas azuis e pratas. Tinha uma bandeira do Corinthians de um lado e outra lgbt+ do outro. Tinham as luzinhas piscando. Tinham até enfeitinhos. Tinha uma estante com vários livros que eu amo. Esse tal Nop fez o trabalho dele muito bem.
- Ficou incrível e em tão pouco tempo! - Eu olhava tudo sem acreditar.
- Estamos acostumados a trabalhar em um prazo curto. Imagina como é viajar o mundo todo em um dia e deixar presentes pra todas as crianças. Tem que ser rápido e certeiro. - Ela sorriu pela primeira vez, mas ficou séria outra vez. - Se sente. Vou te contar tudo.
- Tá. - Eu concordo e me sento na cama. Ela vem e se senta ao meu lado.
- Sam, eu imagino como esteja sendo confuso para você tudo isso. Você teve uma mãe evangélica antiquada que te proibiu de várias coisas. Sua mãe não aceitou suas escolhas de vida e você procurou sua própria casa. Foi viver sua vida. Então, numa noite, do nada, eu apareço ali. Gostaria de ter me aproximado de forma mais tranquila. Gostaria que seu pai tivesse te encontrado. Os Papais Noeis foram homens de várias partes do mundo ao longo da história. A linguagem sanguínea importante é ser vindo da mesma família. Se não tem o filho, vai ser o primo, o sobrinho. Escolhem sempre alguém jovem. O ser humano veio de um ser humano e a genética humana explica isso muito bem, mostrando a árvore genealógica. Tendo mesmo que sendo zero vírgula um por cento de parentesco, pode ser Papai Noel caso o anterior morra ou esteja doente demais para fazer o trabalho. Mon não pode ser porque ela não é filha. Ela foi adotada quando uma namorada de Jorge morreu. Ele adotou a menina e deu para ela algo que não podia dar para a própria filha. Se não tivéssemos conseguido encontrar você, teríamos que ir atrás de outra pessoa com parentesco. Hoje, é aceito que mulheres sejam quem vai fazer o trabalho. Os tempos mudam e nós nos moldamos diante dessas mudanças. Sua mãe era uma mulher dos Estados Unidos e seu pai a conheceu nas férias. Ele se apaixonou por ela e acreditou que poderia fazer aquela mulher tão devota e cega ser uma mulher diferente. O amor humano muitas vezes chega à cegueira. Só que sua mãe nunca aceitou mudar. Ela preferiu pegar você e ir embora. Impedir seu contato com seu pai. Você, assim como seu pai, tem o Natal em seu peito. Você ama o Natal. Isso é algo que sua mãe não retirou de você. Eu sei que você pensa que parece mais com sua mãe, mas existem coisas que, mesmo não havendo convivência, pode ser passada. E isso foi passado para você pelo seu sangue porque você é filha do seu pai. Entendeu? - Ela explicou e eu entendi bem.
- Sim. Obrigada por me explicar. - Agradeci.
- Está tudo bem. Vou deixar Mon cuidar de você agora. Ela só foi comer algo. Eu sei que você vai preferir ser ensinada sobre as coisas daqui por ela. - Ela se levantou e saiu andando, enquanto eu sorri sem acreditar. - E uma dica... Ela nunca saiu daqui. Viveu a vida trabalhando aqui. Tome cuidado com o coração dela. Você acreditar que isso é uma ilusão pode fazer com que ela se machuque porque ela vai saber que é real.
Ela saiu do quarto e me deixou ali sozinha sem saber o que pensar porque era muita loucura para ser real. Mas se fosse real, eu não poderia tratar aquela menina como apenas uma conquista irreal da minha cabeça que inventa coisas. Eu sou mulher. Eu sei como mulheres se sentem quando se sentem usadas. Eu jamais trataria uma mulher assim. Só que eu tinha medo de me jogar de cabeça numa mulher que nem existia. Aí eu acordar de manhã e sentiria a dor eterna de nada ter sido real.

Snow On The Beach (REPOSTAGEM)Onde histórias criam vida. Descubra agora